sexta-feira, agosto 26, 2005

Um Conto (XII) - 2ª parte

(Continuação do post anterior)
  • Quem não lê, é como quem não vê

    (...) Também já lhe acontecera ver o botão referente à sua senha tapado com um papel. Apresentou a sua queixa a uma senhora de bata branca que lhe retorquiu:
    - «Não vê esse painel grande aí em cima dos guichets a dizer quais as especialidades que foram transferidas para o Novo Edifício!?»
    O Novo Edifício, que o informaram ser em frente das Urgências, e as Urgências, que o informaram ser em frente do Novo Edifício, fora uma situação nova e mais confusa, a exigir uma total exploração de novos procedimentos.
    - «As pessoas não são fáceis!», exclamava o Carlos de si para si.
    Punha-se a estudar os rostos e os olhares. Algumas, de boa feição e aparentemente disponíveis, nem sempre reagiam com disponibilidade; revelavam-se antipáticas e respondiam grosseiramente. Outras, de má catadura, com ar apressado, por vezes mostravam-se disponíveis e eram até capazes de alguma ternura e respeito pela sua idade e condição.

    Nesse dia, quando Carlos conversava com o médico, disse-lhe que não mais viria à consulta.
    - «O Sr. Doutor passa-me estes comprimidos muito caros e diz-me sempre que está tudo bem. A minha reforma mal chega para comer. Sabe quanto me custa vir aqui?»
    Quando Carlos inquiriu o médico sobre o custo da sua viagem, estava a referir-se ao dinheiro. Nunca lhe revelaria a sua odisseia até chegar ali, que ainda incluía o regresso a casa, com todas as vicissitudes.
    - «Quem não lê, é como quem não vê. Tem que aprender tudo de cor, como os cegos!», comentava para si.

    Ainda andara na escola e aprendera números e letras, mas ano após ano, a trabalhar, de manhã à noite, sem fazer uso dessas "coisas", como ele diria, acabou por esquecer.

    - «Bem falta me têm feito, depois desta maldita doença que um dia me há-de matar!»


8 comentários:

Santos Passos disse...

Apesar de triste, o conto me transmitiu uma sensação de serenidade, por parte do protagonista.

hfm disse...

e, contudo, tão verdadeiro!

Canis Lupus Horribilis disse...

Desculpa-me por ser neste postal, mas o meu agradecimento pelos parabéns tinham que ser em público.
Obrigado e um gr abraço.

Menina Marota disse...

Pois é... o dia a dia do verdadeiro Povo, é este...

Gostei do texto.

Unknown disse...

Gostei muito do conto.
Nem todos os que respiram sabem ler e escrever ...
Vou seguir com mais atenção esta tua produção literária.
Um abraço.

luis ene disse...

realista mas ao mesmo com um ligeiro e perturbador perfume de antecipação futurista... gostei de ler. Obrigado.

Gasel disse...

Conheço bem esta realidade de todos os dias :)
Gostei!

Anónimo disse...

Muito bom. Parabéns.

www.folhadalte.com