Sísifo
Carlos retinha aquela imagem.
O seu pé direito no primeiro degrau de acesso à carruagem do comboio. Sobre a porta uma palavra em caracteres brancos.
Ao longo do corredor, procurando o lugar que lhe fora atribuído, o nº 37, deparou-se-lhe aquela mulher esquálida, de olhar fixo, amamentando a criança que sustinha ao colo.
Ficou surpreso na vacuidade daquele olhar.
Dois ou três lugares mais e o rapaz de blusão grosso, abotoado até cima, que lia e fumava tranquilamente.
Ficou surpreso naquele atavio, numa tarde tão quente de verão.
Sobre a esquerda uma bela mulher de pernas cruzadas, que revelava as suas coxas por entre a dobra, mal composta, da saia curta.
Ficou surpreso no seu sorriso, quando ao erguer os olhos encontrou os dela.
O nº 37. Sentou-se. Compôs-se melhor no seu lugar. Olhou através da janela e viu os campos secos pela estiagem prolongada.
Ficou surpreso pela inusitada velocidade com que a paisagem se sucedia.
De repente viu-se de novo com o pé no degrau. O longo corredor. A mulher do olhar vácuo. O rapaz do blusão. A moça, as suas pernas e o seu sorriso. A paisagem seca sucedendo-se demasiado rapidamente.
De novo o pé no degrau. Sobre a porta a mesma palavra em caracteres brancos - Sísifo.
Certamente morrera num desastre ferroviário e ficara preso naquele cíclico inferno donde não mais sairia.
Ou então sonhava e ainda não teria acordado.
P. S.
À margem do conto, quero dizer-vos que estou babado com os encómios que me dirigiu o autor do Palácio dos Balcões, a quem já agradeci e que cita este meu blog entre os três melhores que conhece.
Interesante historia, yo tambiem puedo leer portugues, pero no lo escribo. Un Saludo desde lejos
ResponderEliminarJonathan
"Sísifo"
ResponderEliminara repetição em espiral de tudo o que se desenrola no coração humano
Belo ou trágico? Sei lá! Gostei, está simples e profundo.
Luisa
Mais um, António, dos que nos agarra na primeira palavra e nos leva até onde a nossa e a tua imaginação se podem encontrar.
ResponderEliminarTão aparentemente simples e,contudo, tão complexo!
Se aceitarmos o conceito de que o "estilo é o Homem", vislumbro no intertexto do teu conto,a impossível interferência sobre a realidade irreal.
ResponderEliminarDescodificação de uma escrita onde, um dia, nos achámos, não por acaso.
Muito interessante, amigo António. Mas devo confessar que a referência a Sísifo me parece desnecessária. Talvez porque guardo da agonia de Sísifo (via camus) uma parábola da própria existência. Aqui recordou-me mais o mito do eterno retorno...
ResponderEliminarTambém hesitei no título, dadas as diversas interpretações do mito, mas o eterno retorno está presente no mito de Sísifo, apesar de tudo. Poderia não o ter titulado, talvez deixado só inscrito sobre a porta da carruagem.
ResponderEliminarObrigado Luís.
Um abraço.
Obrigado a todos os que me leram e comentaram.
ResponderEliminarContinuarei com os contos por mais algum tempo.