A fotografia reproduz um fragmento de lintel, em madeira de cedro. Provém do Museu Batha, em Fez, e data do período almoada, no final do séc. XIII.
Está exposto em Silves, até 10 de Fevereiro, no Museu Municipal de Arqueologia, integrando a exposição A Arte da Madeira em Marrocos: saber e tradição milenar, uma produção conjunta da Câmara de Silves e do Ministério da Cultura de Marrocos, com a colaboração de Faro, Capital Nacional da Cultura 2005.
O período almoada marca o fim de uma civilização comum aos povos que habitavam o Sul do que é hoje o nosso território, o Sul do que hoje se designa por Espanha e o que hoje constitui o Reino de Marrocos.
Este belo fragmento de madeira poderia ter sido talhado em Silves com os mesmos caracteres cúficos e semelhante decoração floral. Poderia até ter sido trabalhado pelo mesmo artista ou artistas que se ocuparam da sua concepção e do seu talhe, caso a sua encomenda tivesse sido proposta por um habitante desta cidade. O que atrás adiantei, por mera suposição, não seria de todo inverosímil, dada a proximidade das relações. O início do poder almoada no al-Ândalus deve-se a Ibn Qasi, senhor de Silves, que procurou o apoio almoada na sua luta contra os almorávidas, tribo cujo poder os antecedeu.
O séc. XIII assinala o desmoronar desse poder no Norte de África e a queda, em Silves, da civilização muçulmana, às mãos dos bárbaros portugueses do Norte.
O fragmento de madeira a que me venho referindo, de decoração requintada, regista o declínio cultural de Silves, à época uma cidade de referência na arquitectura, na matemática, na história, na literatura, na poesia; um passado histórico de que muitos silvenses se orgulham, mas para o qual ainda não se atingiu paralelo cultural neste séc. XXI, já lá vão mais de oitocentos anos.
quarta-feira, novembro 30, 2005
Património cultural comum
segunda-feira, novembro 28, 2005
O Funicular
Estou de regresso.
Vivi uma novidade nesta minha deslocação ao Porto: a descida do funicular sobre a Ponte de Dom Luís e a Ribeira. Gostei da cabine envidraçada, embora o vidro, sujo, me tivesse prejudicado a fotografia. O Sol também não ajudou, mas a este propósito não tenho a quem me queixar.
quarta-feira, novembro 23, 2005
Um Conto (XVIII)
Nesse bairro não, por favor!
Mário e Eduardo saíram para jantar. A arquitectura, a decoração, a ambiência, o serviço, a ementa, tudo era muito sofisticado. O seu diálogo também: sobre o que liam, sobre o que viam, de teatro, de dança, de música, de cinema, de artes plásticas.
Amigos, desde o liceu, viviam agora em cidades diferentes, mas encontravam-se, algumas vezes por ano, em congressos da sua especialidade comum, em cidades diversas do mundo, como agora, em Seattle.
Já no exterior do restaurante, no longo e feericamente iluminado boulevard, entre lojas que ostentavam as mais conceituadas marcas comerciais, passeavam a pé, em plena noite, sem o menor sinal de insegurança, apreensão tão presente, hoje em dia, na noite de qualquer média ou grande cidade do mundo.
Conversavam sobre os seus projectos de investigação e das dificuldades de financiamento que se faziam sentir em Portugal, apesar do nosso atraso nessa área, com a consequente emigração de alguns dos nossos melhores cientistas.
Caminhavam, distraidamente, tão envolvidos iam na sua discussão, aproximando-se de um bairro com belíssimas vivendas, de um urbanismo arrojado, de extremo bom gosto e, com certeza, altamente dispendioso.
Quando se deu conta do local, Eduardo estacou. No seu olhar e na sua atitude, Mário sentiu algo de estranho.
- «Que se passa?», perguntou Mário.
- «Não vês onde estamos?!»
- «Vejo, perfeitamente, num bairro rico, com óptimas vivendas.»
- «Eu não avanço mais. Voltemos para trás.», propôs Eduardo, num tom implorativo, algo desesperado.
- «Mas, Eduardo, que se passa contigo? Aqui, a segurança, apesar de discreta, é altamente eficiente.», esclareceu Mário, «Trata-se de um bairro de brancos, de brancos ricos.»
- «Pois é isso mesmo que me atormenta.», replicou Eduardo, «Julgas que esses brancos, seguramente instalados nas suas casas, nos seus guetos voluntários, não receiam, sobremaneira, tudo o que lhes é exterior?! Nem precisam de sujar as suas mãos e a sua consciência. Têm os seus seguranças para tratar do assunto, e eles adoram fazer uso da sua profissão.»
- «Por isso mesmo, amigo. Por isso mesmo não há problema.»
- «Mas nós somos pretos, Mário, e os gorilas batem primeiro e só depois perguntam quem somos e que fazemos aqui. Falo por experiência própria. Nesse bairro não, por favor!»
P.S.
Este conto sai um pouco mais cedo do que o habitual porque me vou ausentar de novo, por alguns dias, e desejo manter-vos na minha companhia.
domingo, novembro 20, 2005
Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada
© Diário de Notícias
O Aldo é um dos entrevistados de hoje no Diário de Notícias, em função da comemoração do Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada.
Foi meu aluno e hoje é meu amigo. Uma das suas preocupações reside na dificuldade em circular com segurança na cidade; até mesmo as ruas que recentemente foram sujeitas à intervenção da POLIS não contemplam ainda as alterações que se propõem, visando a segurança da circulação dos que têm problemas com a sua mobilidade. As únicas intervenções desse tipo que registo em Silves, são as que se verificam às entradas das farmácias, por norma de obrigatoriedade, e uma ou outra situação de acesso a novos espaços, que primam pela excepção e não pela regra.
Que este Dia Mundial, que a ONU instituiu este ano pela primeira vez, sirva de alerta a quem tem o poder e os meios para alterar estas situações.
Por respeito pelos idosos e por todos os outros que sofrem no dia-a-dia a periculosidade que têm de enfrentar de cada vez que saem à rua, num desgaste diário das suas energias e do seu estado de saúde, um apelo a quem tem o poder de influir nas decisões. A POLIS, que publicita nos locais da sua intervenção, "O futuro começa aqui!", pode dar um imediato exemplo de que o futuro passa por uma atitude que vá ao encontro dos que se arriscam todos os dias, como o Aldo.
sexta-feira, novembro 18, 2005
Um Cont(inh)o (IX)
Um pouco ao sabor das reflexões suscitadas pelos acontecimentos das últimas semanas, aqui está um novo microconto (cerca de 50 caracteres):
À exacerbação da contrariedade, sobrevinha-lhe a violência.
quarta-feira, novembro 16, 2005
A nossa vida não pode continuar assim
Os sinais acumulam-se há muito; lá como cá.
Os bairros onde os pais só voltam para dormir, onde durante o dia só ficam os velhos, os desempregados, os jovens depois da escola, os jovens que já nem vão à escola. Os locais onde se cresce longe dos pais, entre crianças e adolescentes da mesma idade, que se confrontam com a sua diferença de cada vez que saem do bairro, e que ali se remetem, em aprendizagens de rua, de espertezas e sobrevivência, cujos valores são os do grupo, do pequeno grupo que aprendeu por si. Nestes bairros, como nos outros, há reprodução social.
Como aqui transcrevi, outro dia, a propósito do filme Crash:
Há que impor outra velocidade à vida.
Há que saber como, antes que seja tarde.
segunda-feira, novembro 14, 2005
De regresso a casa
Mais fotos de Évora
De Évora, trago-vos esta foto: são as torres da Sé Catedral, pintadas da cor do Sol ao entardecer.
Trar-vos-ia a satisfação que senti ao voltar aqui a passear, lentamente, fazendo registos para memória futura, se tal fosse possível transportar. Dir-vos-ia do prazer do regresso ao contacto com o frio, que se fez sentir nas noites eborenses, se o pudesse descrever. Contar-vos-ia, não fora a discrição que se deve às relações de amizade pessoais, como é bom estar com velhos amigos e familiares, partilhando lembranças e fruindo do calor da amizade.
Do que não vos trouxe, não vos disse ou não vos contei, todos nós sabemos bem, felizmente, com o devido ajuste à nossa natureza e ao nosso percurso pessoal.
Testemunharei, tão só, que um dia quero voltar.
quarta-feira, novembro 09, 2005
Ausente por alguns dias
Vou estar ausente, por estas bandas, revendo colegas e amigos de há muitos anos.
Até breve!
segunda-feira, novembro 07, 2005
Sacode as nuvens...
A 6 de Novembro de 1919 nasceu Sophia.
Não tive oportunidade de aqui deixar, ontem, a singela homenagem que tinha programado. Faço-o hoje.
- Sacode as nuvens...
Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar,
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Cem poemas de Sophia
Editorial Caminho, Lisboa 2004
quinta-feira, novembro 03, 2005
Um Conto (XVII)
O meu amigo Jojó
O Jojó morava do outro lado da rua, numa casinha térrea de barras azuis na porta e nas janelas.
Foi meu colega na pré-primária. Logo pela manhã descia um pouco a rua, colocava-se frente à minha porta e aguardava que eu descesse e o acompanhasse até à escola. Eu cumpria escrupulosamente essa rotina. Lembro-me de que uma vez tinha descido primeiro do que ele e fui esperá-lo. Ele não gostou que o tivesse feito. Chegou mesmo a dizer-me: - «Não é assim que se faz!».
Seguíamos juntos. Raramente conversávamos. Ele nunca assumia a iniciativa e eu obtinha invariavelmente respostas assertivas, breves e secas. Mas sei que ele gostava de mim. Considerava-me o seu melhor amigo; o seu amigo de confiança. Eu também sentia muito carinho e respeito pelo Jojó.
Na escola, refugiava-se a um canto e observava-nos, disfarçadamente, pois sabia que o seu olhar desencadeava respostas de alguma agressividade, com caretas, arremesso de objectos ou confrontação física.
O Jojó era diferente dos outros.
Como e quando teria ele descoberto essa diferença? Que conjecturas retirava das atitudes dos colegas?
Na escola primária a situação agravou-se, nomeadamente perante os colegas mais velhos, a quem eu próprio não me atrevia a opor-me ou a chamar a atenção. Também passou a ficar na escola, por um tempo suplementar, e perdeu a minha companhia no regresso a casa.
Quando passei ao liceu, ele ainda se mantinha na outra escola. Mais tarde, na adolescência, quando se aproximava de mim, o que só acontecia se eu estivesse sozinho, passou a perguntar-me o nome desta ou daqueloutra das minhas colegas e um dia mostrou-me, às escondidas, uma carta que tinha escrito para a Margarida. Na longa folha de papel, de linhas azuis, além do nome dela - Margarida - tinha preenchido todo a carta com a mesma frase, sempre repetida - Eu gosto de ti.
Com o passar dos anos e quando, de férias, regressava a casa, observava que o Jojó não era já o segregado ou o alvo da agressividade gratuita dos outros; antes lhes era absolutamente indiferente.
Vi-o ontem, na Feira. Olhou-me quando o cumprimentei, mas nos seus olhos só vi ausência. À indiferença dos outros o Jojó foi ficando indiferente aos outros e nem já o calor da ira, da reacção à maldade, o habita. Ninguém sequer já proclama quando por ele passa: - «Olha o mongolóide!»
Até me apeteceu dizê-lo, de raiva, a ver se reagia, se reactivava de dentro daquele invólucro, pelo menos um resto do Jojó que eu conheci.
Não o fiz. Sei, cá no fundo, que nessa indiferença viverá o resto dos seus dias.
quarta-feira, novembro 02, 2005
عيد الفطر - 'idu al-Fitr
Terminou o Ramadão (رمضان).
Os muçulmanos comemoram amanhã uma das suas maiores festividades, o 'Aidu al-Fitr (عيد الفطر), no 1º dia do mês de Xaual (شوال).
Agradecem as bençãos que lhes foram concedidas durante o Ramadão.
A todos os meus amigos muçulmanos, os meus votos de um feliz dia.
Nota:
Amanhã, no Local & Blogal, é dia de conto.
terça-feira, novembro 01, 2005
O Terramoto de Lisboa
Passaram-se 250 anos.
Gravuras e textos sobre o Terramoto de 1755 ocuparam e continuarão a ocupar por mais alguns dias os orgãos de comunicação do nosso país. Aqui nos blogs irá ocorrer situação semelhante. Há importantes lançamentos de livros sobre o tema, tanto em Lisboa como no Algarve, com abordagens científicas e literárias de elevado interesse.
A minha cidade, Silves, foi das mais afectadas e diz-se que teriam ficado de pé "umas 20 casas".
Mais do que os factos relacionados com a sismologia e a destruição, gostaria de chamar a vossa atenção para a repercussão internacional que o Terramoto suscitou e que se relaciona com o Iluminismo, essa corrente de pensamento, de ordem científica e filosófica, de carácter racional, representada em Portugal pelos chamados estrangeirados e, particularmente, pela figura mais eminente da época, o Marquês de Pombal.
As explicações racionais do fenómeno colidiram fortemente com a mentalidade religiosa da época.
Voltaire escreveu um poema sobre o Terramoto, questionando-se sobre a Providência divina, assunto que voltou a abordar num dos seus mais famosos romances, Candide. Deixo um link para o Poema sobre o desastre de Lisboa (em francês), agora traduzido por Vasco Graça Moura e incluído na publicação a apresentar na capital, por esta ocasião, pela editora Alêtheia.
Permitam-me que vos deixe ainda o link de um ficheiro do Word, com uma tese, assinada por Robert K. Reeves e apresentada no Dickinson College - The Lisbon Earthquake of 1755 (em inglês) - sobre o confronto entre a Igreja e o Iluminismo, com várias imagens sobre a cidade de Lisboa, ao tempo, de onde retirei a ilustração que encabeça este post.