Já por duas vezes aqui abordei trabalhos do Teatro da Garagem: em 11 de Julho de 2005, sobre a peça A vida continua (clique) e em 10 de Abril de 2006 num post que intitulei Um Teatro próximo de si (clique).
Em Comédia em 3 Actos, a que assisti na passada sexta-feira e que mereceu outra representação no sábado seguinte, o 1º acto teve lugar na caixa negra da sala principal, no rés-do-chão do CAPa.
Miguel Mendes assumiu, com a mestria a que já me habituou, o papel de um homem, Tavares Pereira, cheio de tiques e preocupações higiénicas levadas ao extremo, num cenário de banco de jardim sobre relva, onde, em breves apontamentos de limpeza e desinfestação do banco onde pretende sentar-se, para espiar os casais de namorados, escondido por detrás de um jornal que finge ler, acaba por traçar o perfil psicológico da personagem, num recorte de comicidade. A outra personagem é Boazinha, a garota por quem Tavares Pereira se apaixona. Uma terceira personagem, a Tia Alberta, introduz o elemento gerador do cómico pelo absurdo da aproximação amorosa de Tavares Pereira a uma Boazinha que nunca sentiria a mínima atracção por tal sujeito. A Tia Alberta é assim o sonho de Tavares Pereira, numa mente perturbada de solteirão voyeur e tremendamente só. O riso também se gera com base na crueldade do nosso olhar perante a figura patética do solteirão face a uma Boazinha muito escultural e inocentemente fútil.
O 2º acto, num dos pisos superiores do edifício, com algumas cadeiras, tapetes e almofadas para os espectadores, numa sala ampla, retoma o tema das relações amorosas de um par: Madalena Furacão e o Materialista da Treta.
A peça irrompe com uma entrada precipitada de Madalena através de um enorme círculo de esferovite, como os círculos de projecção de luz nos espectáculos de cabaret. Num salto acrobático, Madalena estilhaça o círculo de esferovite, lançada no ar, e entra em cena aterrando em palco, de pé, exclamando fortemente, numa surpresa que toma conta da sala: "EU SOU DOIDA!".
Está dado o mote às relações conturbadas de Madalena e do Materialista. Uma terceira personagem, o fotógrafo, simboliza esse sonho de ser grande no mundo do show business, numa procura de figurar no meio do jet set como o topo dos objectivos de vida: o dinheiro, a fama, o prazer, num furacão desmedido, em relações sem significado, que se consomem na volúpia desmesurada do dia-a-dia. A comédia reside no absurdo e no sem-sentido das relações, num envolvimento de tragédia, que me deixou inquieto e perturbado. Foi o acto de que mais gostei e é, creio eu, o que me ficará registado na memória do espectáculo, protagonizado por dois excelentes actores, de uma sobriedade inexcedível no meio de um cataclismo sucessivo de situações dramáticas.
Comédia?!
Sim, no que ela tem de trágico.
O 3º acto, de novo no rés-do-chão, traz-nos a nostalgia de um par de saltimbancos: ele, o homem em avançada idade, e ela, a jovem aprendiz.
Foi o acto de que menos gostei, por uma razão que tem a ver com a minha visão pessoal do acto dramático e da sua representação. As duas personagens vivem substancialmente das capacidades histriónicas e do perfil físico dos seus dois intérpretes, como virtuosos do espectáculo, que é uma circunstância de que não gosto. Não aprecio o artista virtuoso e fixo-me de tal modo nesse modelo de representação, que acabo por perder a visão geral do texto e do espectáculo. Mas isto é assunto pessoal e não uma crítica.
(Continua num próximo post o que se refere à dança)