terça-feira, novembro 30, 2004

Rua Bernardo Marques

Rua Bernardo Marques, © António Baeta Oliveira, Novembro 2004
Rua Bernardo Marques

FINALMENTE, a obra tem um ar terminado.

Digo finalmente reportando-me a um post onde comento o início desta obra, no dia 14 de Julho de 2003.


© www.carvoeiro.com   © Margarida Soares   © António Baeta Oliveira

Estas três fotos documentam os três diferentes aspectos que conheci desta rua: a primeira, antes de meados dos anos 70; a segunda, desde esse tempo até 14 de Julho de 2003; a terceira, actual, desde a semana passada.

Bem! Francamente, gosto.
Creio, no entanto, que são desnecessariamente elevadas as "floreiras" centrais. A propósito das árvores lá plantadas (não me refiro às outras plantas), ainda pequenas, não sei, mas receio que o seu porte possa vir a dificultar a visão do que mais gostava nesta rua, ao tempo da primeira das três fotografias: "o espaço, a amplidão do olhar, o simples pormenor de ver a rua toda, desanuviada...", e as duas torres albarrãs da antiga cerca da medina.

É uma opinião e o meu contributo de cidadão.

P.S.
Entretanto, já visitei o 7.º Itinerário de Arthur Rimbaud
.


segunda-feira, novembro 29, 2004

+ amigos

O Manuel foi o ano passado colocado numa escola em Silves. Conhecemo-nos e ganhámos uma amizade que se consolidou numa estadia em Marrocos, num curso de civilização árabe, no passado Verão. Um dia, ao almoço, numa mesa cheia de amigos em alegre convivência, ao mostrar-lhe algo que havia escrito a propósito das impressões daquela estadia, ele puxou do seu moleskine e revelou-me este poema, que escrevera havia algum tempo e que me surpreendeu, pois desconhecia a sua escrita poética.
Num destes últimos fins-de-semana, por email, surpreendeu-me de novo, ao oferecer-mo. Agora é meu. Posso partilhá-lo:

  • quando o dia terminar

    quando o dia terminar. quero
    que deixes a janela aberta
    ao riso das crianças. que
    teus passos continuem
    a iluminar cada canto da casa.
    quero de novo teu corpo
    junto ao meu. num repousar
    de sombras. num silêncio só nosso

    Manuel A. Domingos


Em Limites de Luz, pode apreciar poesia do Manuel.


sexta-feira, novembro 26, 2004

Os amigos

Torquato da Luz foi meu amigo de infância, em Alcantarilha.
Quando terminámos o ensino primário, rumámos a diferentes locais para continuar a estudar. Fomo-nos encontrando esporadicamente durante algum tempo, mas não nos vemos há bem mais de trinta anos.
Foi mais fácil para mim seguir o seu percurso do que ele o meu, pois jornalista em Faro, Lisboa e Porto, mais tarde director, de jornais e do 2º canal da RTP, ganhou uma visibilidade mediática que me permitiu ir sabendo coisas de si.

É curioso, agora que escrevo, pensar no porquê de uma amizade que deveria ter terminado aos 10 anos de idade, quando nos separámos. Quantos amigos ao longo da vida já terei esquecido? Quantos colegas não mais recordei ou conseguirei recordar? Porquê o Torquato e alguns mais dos meus tempos de infância, outros da adolescência, ficaram amigos para sempre, mesmo que não nos vejamos, nem saibamos por vezes do seu paradeiro?
É uma amizade como se nos conhecêssemos por dentro.
Nem me lembro já de que forma passamos a comunicar com alguma regularidade nestes últimos tempos, por email ou comentários aqui, no blog, mas a memória afectiva guarda a espontaneidade de uma amizade de há dezenas de anos, sem nos vermos, como num encontro de amigos que se tivessem visto no dia anterior.

Hoje é dia de mais um aniversário do Torquato.

Por isso, este seu poema dedicado à terra que o viu nascer:

  • Alcantarilha

    Aqui é que sou eu
    aqui é que estou certo.
    Regaço a que regresso
    natural e liberto
    neste chão que é o meu
    me recomeço.

Um outro seu poema ainda, a Silves, a terra de quatro gerações de familiares que me antecederam (que eu saiba, pelo menos):

  • Silves

    Para além desta porta não há nada
    e esta escada
    pára de súbito no ar.

    E que dizer da janela
    também ela
    que já não dá para o mar?

    Nada diremos
    nada.

    Na memória arruinada
    só persiste o apelo:
    reter nas mãos o momento
    bebê-lo até ao fim
    bebê-lo lento
    no esplêndido ondular do teu cabelo.


quarta-feira, novembro 24, 2004

A cidade corticeira

Clique para ampliar - © Henrique Martins
Silves, anos 30

A História local não tem lugar no currículo escolar, salvo por iniciativa pessoal deste ou daquele professor de História, e o conhecimento do passado de qualquer localidade do nosso país restringe-se a um núcleo reduzido de estudiosos ou de curiosos.
Se o conhecimento da História local ou regional tem importância, então é importante que se reveja esta situação, de forma a que os currículos venham a incluir esse estudo, que mais não seja através de trabalhos de consulta das obras indicadas numa bibliografia de referência.

O que sobre a História de Silves mais facilmente chega ao comum dos cidadãos limita-se à ideia de que no passado "Silves foi conquistada aos árabes", Diogo de Silvese sobre a gesta da Expansão Portuguesa, creio ser possível assegurar que a maioria da população nunca ouviu falar de Diogo de Silves, o descobridor dos Açores, com direito ao seu reconhecimento por parte dos açorianos, homenagem na filatelia nacional, com nome de rua em Odivelas (vá-se lá saber porquê) e, penitencio-me se peco por erro, sem ter sequer uma simples placa toponímica na sua própria cidade.

Há, ainda, um outro período histórico de particular relevância, marcado no tecido urbano pela expansão da cidade para Nascente, patente na rua Cândido dos Reis, e em todas as cercas de fábricas abandonadas ou utilizadas em mais ou menos recentes urbanizações e requalificações: a Silves da indústria corticeira.
Essa Silves permanece ainda em toda a baixa da cidade e nos seus edifícios de maior porte, nos prédios oitocentistas que serviram todo o comércio local e até nos majestosos edifícios dos Paços do Concelho ou do Palacete Grade.
Clique para ampliar - © Henrique Martins   Clique para ampliar - © Henrique Martins
Apesar da recente intervenção de requalificação urbana da baixa citadina e dos novos edifícios e bairros a nascente e poente da cidade, Silves mantém ainda, além da sua silhueta (que parece não sofrer alteração desde os anos 30, de acordo com as fotos), as características arquitectónicas e urbanísticas dessa época, mescladas com as benfeitorias da moda e os remendos do tempo.

Aproveito o blog para estabelecer a ligação a um trabalho de João Madeira (Mestre em História do séc. XX), publicado no nº 12 de O Mirante, Dezembro de 1997 (orgão da Associação de Estudos e Defesa do Património Histórico-Cultural de Silves), sob o título Da alvorada do século ao Estado Novo.
Terá acesso a breve informação estatística, referências à formação da Associação de Classe dos Corticeiros (edifício de dois pisos na Rua da Sé, onde estão instalados alguns serviços camarários) e da Cooperativa Operária "A Compensadora" (ainda em funcionamento), notas sobre a luta pela redução da jornada de trabalho das 12 para as 10 horas diárias, relato da greve de 1924, que registou um morto e vários feridos (fez agora 80 anos a 22 de Junho), e outro relato, mais alongado, sobre os eventos de 18 de Janeiro de 1934, a crise do anarco-sindicalismo e a emergência do PCP, ainda referências ao jornal Voz do Sul, com sede no local onde ainda hoje há uma tipografia, na rua 5 de Outubro.

P.S.

Foi com surpresa que vi o Local & Blogal ser considerado o Blog do dia.
"De e sobre Silves. Muito interessante e original pela constante referência às nossas raízes e tradições árabes", citando Gabriel Silva, em Blasfémias, um blog com uma média superior a mil visitantes por dia.
Obrigado!

Atenção! Já está online o 6º itinerário de Arthur Rimbaud.


segunda-feira, novembro 22, 2004

Julião Quintinha

Jornalista e escritor, Julião Quintinha foi uma figura ilustre da vida silvense e da vida lisboeta da sua época (1886-1968). Assumiu um papel importante na direcção das associações que vieram a instalar-se no prédio da Rua do Loreto, em Lisboa, e deram origem à Casa da Imprensa.

Convém recordar esta figura do passado da minha terra que tende a cair no esquecimento, enterrada na lápide do nome de uma rua, e chamar a atenção para o valor da sua obra, apelar à sua eventual republicação.


É o que faço ao remeter-vos para O Pató, um pequeno conto, com a cidade de Silves como cenário, ao fundo.

Não resisto a atrair a vossa atenção, com um pequeno excerto que retrata esse mundo dos anos 20/30, do anarco-sindicalismo, da organização operária dos corticeiros, de que ouvia falar em surdina, quando miúdo, sem entender, mas que sempre me atraiu pela curiosidade que me desencadeava:

  • " (...) O mês corria tumultuoso, triste, faminto: os operários tinham protestado contra a miséria do salário; estalara, violenta, vermelha, ruidosa, a greve! O patrão mantinha-se irredutível, em guarda dos seus interesses, e o governo - como suprema solução - mandara tropa, soldados, cavalaria que guardava vinhedos e figueirais, que guardava tudo... Era raro o dia em que não havia "cenas" com a tropa, e depois, gente presa, gente ferida, muita gente sobressaltada. (...)"

Remeto-vos ainda para a divulgação de uma outra importante figura de Silves, da mesma época, que ilustrou o livro de Julião Quintinha, na imagem acima - Bernardo Marques (1899-1962), ilustrador e pintor, homenageado em Silves e Lisboa por ocasião do centenário do seu nascimento.

P.S.
Atrevo-me a aconselhar os meus leitores de Silves a guardar estes textos que sugiro, usando a impressora, e divulgá-los junto dos amigos, dos pais ou dos avós. É um serviço que se presta à memória de Julião Quintinha e Bernardo Marques e também à cidade de Silves.


sexta-feira, novembro 19, 2004

Aos amigos

A sua barba ainda era preta, bem preta, quando pela primeira vez o li.
Abro hoje um espaço para a sua poesia, percursora da modernidade que desemboca nos anos 60, nomeadamente pela pena dos poetas de Poesia 61, que ainda há pouco aqui evoquei.

Herberto Helder

        • Aos Amigos

          Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
          Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
          com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
          Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
          dentro do fogo.
          - Temos um talento doloroso e obscuro.
          Construímos um lugar de silêncio.
          De paixão.


      Herberto Helder
      Ou o Poema Contínuo
      Assírio & Alvim, 2004


quinta-feira, novembro 18, 2004

Globalização

Talvez seja esta a ultima transcrição que farei de Na Barca do Coração, de Casimiro de Brito, deste seu diário do ano 2000, a chegar ao fim.
Com data de 18 de Novembro:

  • "Globalização: a miséria dos países mais pobres e das classes mais pobres dos países ricos - já não comove. Já não surpreende ninguém. Banalizou-se. A não ser que haja (ou se fabrique no centro das imagens) um fait divers. Que se monte um espectáculo. É desolador. Uma espécie de prazer da indiferença? Do "não me vêem, não me fazem mal"? É o tempo da iliteracia e das seitas e dos mágicos para todos os gostos. Eles não querem morrer, querem é dormir, esquecer. Querem não ser. Amnésia. Uma árvore onde os pequenos galhos se multiplicam. E saltam de um galho para outro, silenciosos, videirinhos. A multidão está no chão, convulsa, compacta, esmagando-se."


Afinal não resisto a outra transcrição, dado que, como comentou Casimiro:
"(...) O maldito ofício de poeta. Resumir, com palavras mortas, a matéria viva (crua, cruel) do mundo.(...)"

Com data de 16 de Novembro:

  • "Às armas de Israel responderemos com as nossas almas", disse Arafat. Almas/armas, não sei se funciona em árabe, mas em português já li "almas brancas" por "armas brancas". E, não sei onde, "almas armadilhadas".



quarta-feira, novembro 17, 2004

Vendéeglobe



O Eurico, de Um pouco mais de Sul, chamava outro dia a atenção para uma regata à volta do mundo, solitária, sem escala e sem assistência, num autêntico desafio à capacidade de resistência humana e à fúria dos elementos.
A curiosidade fez-me dar uma espreitadela ao site oficial da prova e fiquei entusiasmado com o rigor das coordenadas que localizam cada um dos concorrentes, a sua velocidade e direcção, a distância que os separa uns dos outros, as condições meteorológicas que se lhes oferecem, as cartas geográficas, os vídeos, as fotos e até a possibilidade de os contactar por email, assim, tão por dentro, podendo acompanhá-los na viagem, a partir do conforto das nossas casas.

Na noite passada, por volta das 19h00 (hora de Portugal), depois de nove dias de viagem, Norbert Sedlacek, vienense, viajava no seu Brother em latitudes próximas dos 20º N.

www.vendeeglobe.org   www.vendeeglobe.org
No conforto dos seus aposentos.     Em risco de saltar borda fora.

A referência a Norbert Sedlacek resulta do facto de ocupar, à hora a que escrevo, o último lugar da regata. A menos 4º de latitude, junto às ilhas de Cabo Verde, viajava a última das duas mulheres em competição - Anne Liardet, no Roxy. Em primeiro lugar avança Jean Le Cam, no Bonduelle, preparando-se para mudar de hemisfério, pois encontrava-se perto dos 5º de latitude, perseguido de "perto" por outros concorrentes.

Isto, e o mais que quiser saber, se for o caso, encontrará ao clicar no logo da regata Vendéeglobe, a encimar o post.

P.S.
Se visitou o site de Arthur Rimbaud, na passada quarta-feira, saiba que deverá ter hoje lugar a apresentação do 5º Itinerário.


terça-feira, novembro 16, 2004

XARAJÎB

Está em fase de acabamentos finais a sede do Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves - CELAS - projecto que veio reabilitar o antigo Matadouro Municipal.

© António Baeta Oliveira, Uma das janelas do edifício sede do CELAS
Uma janela para o interior do edifício e
um olho para o exterior, reflectindo o mundo envolvente


XARAJÎB - شَرَاجِيبْ - (nome do palácio que Al-Mu'tamid evoca no poema "Saudação a Silves") é o título da revista do CELAS, agora na sua 4ª edição.

Na página de Introdução afirma Ana Maria Mira, Presidente do CELAS:

    "(...) Mas muito em breve, na nossa casa já reabilitada, poderemos alargar ainda mais o âmbito das nossas intervenções e sobretudo intensificar o debate, dissipador de brumas (apesar do impacto desestruturante das novas cruzadas), sobre as diversas problemáticas que nos preocupam, tendo sempre, como pano de fundo, o Al-Andalus a que pertencemos e as culturas mais longínquas que lhe estão subjacentes, na busca do saber, do entendimento e da amizade com esses povos, aos quais nos ligam afinidades ancestrais."


Do Sumário, além da Introdução, constam:

    - O Islamismo Sunita entre os africanos negros de Moçambique: Roteiro Histórico para algumas questões sócio-antropológicas, por Eduardo Medeiros
    - Muçulmanos e portugueses - Espaços de colaboração e conflitualidade no Sudeste Africano, por José Capela
    - A Administração portuguesa e o Islão, em Moçambique e na Guiné, nos anos 1960 a 1970: Comportamentos comparados, por Fernando Amaro Monteiro
    - Pele Negra, Memória Branca: O Padre Setecentista Manuel do Rosário Pinto e a sua História de São Tomé, por Arlindo Manuel Caldeira
    - O Pan-Africanismo nas Ilhas de Cabo Verde, por Manuel Brito-Semedo
    - Poder e comunidades no Sul da Índia, 1500-1663 - O caso dos Muçulmanos de Kerala - algumas perspectivas, por José Alberto Rodrigues da Silva Tavim
    - "Turquerie" na iconografia do século XVI, por Marília dos Santos Lopes
    - As praças marroquinas no século XV, por Valdemar Coutinho
    - Arabismo, instrução pública e relações luso-magrebinas no século XIX: Manuel Nunes Barbosa e António Caetano Pereira, por Rui Pereira
    - Origens e formação da população tunesina - (uçul al-xa'b al-tunisi ua-tamazúju-ha), por Áhmad Al-Hamrúni
    - Emblemática islâmica, simbologia muçulmana e vexilologia árabe (2ª parte), por António José Rodrigues
    - Ibn Darraj al-Qastalli - Le Chantre des Amirides, de la felicité et l'adversité, por Hamdane Hadjadji
    - Al-Mu'tamid - Poeta do Destino, de Adalberto Alves, (apresentação da 2ª edição), por Tiago Bensetil
    - Al-Mu'tamid - Poeta do Destino - A segunda edição que é uma terceira, por Adalberto Alves
    - Exposição "Da Letra ao Gesto" - Pintores Calígrafos de Marraquexe
    - De l'Art de la Calligraphie en Islam à la Création Contemporaine - Artistes Calligraphes de Marrakech, por Sakina Rharib-Skounti
    - Listagem dos livros oferecidos e adquiridos para a Bilioteca do Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves


XARAJÎB
Centro de Estudos Luso-Árabes
Apartado 57
8300-999 Silves
Tel.: 96 634 59 76
Fax: 282 442 447
email: silveslusoarabe@hotmail.com

P.S.
Um comentário de Helder Raimundo alertou-me para a existência de um blog - Palácio dos Balcões - tradução para português do árabe "Xarajîb", que dá título ao meu post de hoje.



segunda-feira, novembro 15, 2004

Terminou o Ramadão

© António Baeta Oliveira, Velhos conversando, Xauen

Regresso ao tema da civilização do Al-Ândalus no dia que se segue a uma das maiores festividades do mundo islâmico - عِيدُالفِطْرِ - 'Idu al-Fitr - o 1º dia do mês de Xawwal, o mês que sucede ao Ramadão. É um dia em que todos se saúdam uns aos outros. É um dia de alegria.

É também cheio de alegria e humor o poema de At-Tulaytuli, que deve ter nascido ou vivido parte significativa da sua vida em Lisboa (séc. XI), pois também é conhecido como lisboeta - Al-Uxbuni.

    • A Formiga

      amplo quadril, esbeltez miúda,
      eis um talhe claramente exagerado.
      levando as provisões parece uma viúva,
      alguém que, sobre pinças, ao peso vai dobrado.
      olhem-na detrás: tal qual fresco pez!
      ou, melhor, um espesso borrão
      que negra tinta de um escrivão
      ao cair da pena ali lhe fez.


Adalberto Alves
O meu coração é árabe
Assírio & Alvim, 1999


sexta-feira, novembro 12, 2004

Arafat vai a sepultar

      www.cnn.com

Não sou maniqueísta e não tenho sobre o conflito do Médio Oriente nenhuma posição pró ou anti palestiniana e pró ou anti israelita mas, com sinceridade, também não sou completamente neutral, pois a minha formação e as circunstâncias que me fizeram, tal como sou hoje, inclinam o ponteiro da balança das minhas simpatias para um dos lados do conflito, que me dispenso de nomear porque, creio eu, é demasiado óbvio para quem me conhece ou para quem me lê.

Não defendo a concepção de que os judeus tenham direito de posse sobre qualquer dos territórios que constituem o Estado de Israel, mas reconheço que hoje, o Estado de Israel é um estado de direito, uma sociedade organizada e democrática.
Defendo que a Palestina seja definitivamente reconhecida como Estado soberano e reivindique como seus os territórios ocupados militarmente por Israel. Acordos posteriores sobre esta matéria serão da competência dos dois estados, soberanos e independentes.

Compreendo a luta dos palestinianos e a sua rebelião contra uma potência que usurpou parte do seu território e reconheço à sociedade israelita contemporânea o seu direito a organizar-se militarmente para defender a sua população e os seus haveres.

Sobre a Intifada, recordo as palavras de Casimiro de Brito (que aqui reproduzi em post com data de 22 de Outubro:

    "A maior parte dos mortos e feridos na Intifada são crianças ou adolescentes. Quem os fere, quem os mata? Quem os coloca na frente de combate ou quem atira a matar? Vão mais depressa para Alah, dizem. São abatidos duas vezes. (...)

Preocupa-me profundamente a situação de guerra permanente que há gerações se vive na Palestina, alimentada pelo ódio e pela intolerância religiosa, e em Israel, pelas mesmas circunstâncias.

Não me compete julgar o homem que hoje vai a sepultar, mas o líder Arafat foi, sem dúvida, um dos principais responsáveis pela degradada situação em que hoje se vive naquela região do mundo.

Mais do que a minha opinião (a que não me posso eximir, por consciência de quem escreve, publica e se expõe), quero indicar-vos este trabalho de James Bennet, jornalista de The New York Times, de que tomei conhecimento em Rua da Judiaria e que considero um trabalho sério de jornalismo, com adequado tratamento tecnológico de acesso pela Internet:


P.S.
Embora a data acima continue a ser a do dia 12 de Novembro, este post scriptum só foi editado a 13, em contenção respeitosa pela memória de Yasser Arafat, ontem sepultado.
Quero indicar um outro link para um outro trabalho multimédia de The New York Times, da responsabilidade do jornalista Greg Myre:

                 Yasir Arafat - Death of a Palestinian Leader (Clique no sublinhado)



quinta-feira, novembro 11, 2004

Um tempo em que a vida se vê de olhos vendados

Casimiro de Brito, a 11 de Novembro de 2000, falava de João César Monteiro e de Branca de Neve, de Álvaro de Campos, e deste nosso tempo a que ele chama negro e a que eu chamava cinzento há poucos dias atrás, mas que está seguramente bem mais preto do que Casimiro de Brito poderia imaginar, quatro anos passados:

  • João César Monteiro, menos libertino e mais cansado, apresenta um filme com poucas imagens. Setenta minutos ao negro, "aquela coisa horrivelmente obscura, aqui e acolá - o que deve agradar muito aos católicos - entrecortada por nesgas de céu azul", disse João. A perfeita metáfora deste tempo, um tempo em que a vida se vê de olhos vendados. É por isso que, exausto, ele diz "não" e pendura o casaco em cima da objectiva. O filme Branca de Neve, é paradigma do conto para crianças, que se julga ser colorido mas não é. Que bem negros são os dias da princesa, sempre com a bruxa da madrasta, repudiada pelo vaticínio do espelho mágico, a tentar envenená-la.
    (...)
    São cada vez mais negras as cores do buraco em que vivemos, as deste mundo real, o mesmo que se projecta nas histórias de encantar. Se abro um jornal, e já tenho os dedos manchados pelo negro da tinta e pela malícia dos títulos, percebo logo. E se ligo a televisão, com toda aquela policromia, ainda percebo melhor: é o negro que vejo, o inferno, a boçalidade do que me dizem ser a vida, embora ela, na sua omnipresença, se alimente de todas as cores. E depois o preto não é a morte das cores, mas pode ser esse momento em que as outras cores não nasceram ainda. Preto é o silêncio que rói entre pais e filhos adolescentes, ambos abandonados. E que cor tem um rio podre? Ou o leite das vacas loucas? Ou um menino (branco ou negro ou amarelo) sem infância? Quantos cegos somos, os invisuais e mais quantos. São pretos os lençóis dos amantes desavindos que teimam em dormir juntos. Preta, a política que já não fala de paz ou que invoca a paz e manda bombardear. O medo. O fracasso individual. A pornografia. A velhice. E alguma infância, recordo-me do poema de Álvaro de Campos, "Sonetos são infância, e, nesta hora, / A minha infância é só um ponto negro." Falta de respeito pelo público, disseram a João César. "Quero que o público se foda", respondeu.

    Casimiro de Brito
    Na Barca do Coração
    Campo das Letras, 2001



quarta-feira, novembro 10, 2004

La liberté libre

Uma amiga (Helena Monteiro) chamou-me a atenção para um site, de origem francesa, de homenagem a Arthur Rimbaud neste ano de comemoração do 150º aniversário do seu nascimento.
Trata-se de uma produção multimédia de extremo bom gosto, onde forma e conteúdo se equilibram de maneira notável.

Hoje, deve ficar disponível o 4º itinerário, dos oito que darão forma completa a este magnífico local na Internet.
Visitai-o! Eu irei visitá-lo também.

Entretanto deixo-vos com um seu poema, na língua original e numa tradução de Augusto de Campos (que me foi facultada num dos emails de divulgação de poesia, de Amélia Pais):






Voyelles

A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu : voyelles,
Je dirai quelque jour vos naissances latentes:
A, noir corset velu des mouches éclatantes
Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,

Golfes d'ombre; E, candeurs des vapeurs et des tentes,
Lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles;
I, pourpres, sang craché, rire des lèvres belles
Dans la colère ou les ivresses pénitentes;

U, cycles, vibrements divins des mers virides,
Paix des pâtis semés d'animaux, paix des rides
Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux;

O, suprême Clairon plein des strideurs étranges,
Silences traversés des Mondes et des Anges:
- O l'Oméga, rayon violet de Ses Yeux!


Vogais

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais,
Ainda desvendarei seus mistérios latentes:
A, velado voar de moscas reluzentes
Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;

E, nívea candidez de tendas areais,
Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;
I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes
Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;

U, curvas, vibrações verdes dos oceanos,
Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos
Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;

O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncios assombrados de anjos e universos;
- Ó! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos!



segunda-feira, novembro 08, 2004

Império

http://statue-of-liberty.visit-new-york-city.com
Agora, que os ânimos, o ritmo e o volume das análises vão acalmando e sei que Bush ganhou, é mais fácil não cair na tentação de acreditar que o imperialismo americano, apesar de ter podido apresentar uma outra face, pudesse vir a defender outros interesses que não os do cartel que o justifica e o sustenta.



Já depois de ter terminado este escrito algo sentencioso, lembrei-me, recorri à minha biblioteca e transcrevo:

  • "(...)
    - O senhor exagera a sua importância, Sr. Hearst.
    - O senhor não compreende nada, Sr. Roosevelt.
    - Compreendo isto. Você, o dono... não, não, o pai do país, não conseguiu que os democratas o elegessem candidato à presidência, nem sequer num ano em que não havia a menor possibilidade de eles ganharem. Como explica isso?
    Os olhos de Hearst, muito claros e profundamente implantados, fitavam agora Roosevelt a direito; o efeito era ciclópico, intimidante. - Em primeiro lugar, dir-lhe-ei que não tem a menor importância quem é que se senta nessa cadeira. O país é governado pelos trusts, como você gosta de nos recordar. Eles compraram tudo e todos, incluindo você. A mim não me podem comprar. Eu sou rico. Por isso sou livre de fazer o que quero, e você não. Geralmente, alinho com eles apenas para manter o povo dócil, por agora. Faço-o através da imprensa. Mas você apenas desempenha um cargo. Em breve sairá daqui, e será o seu fim. Mas eu continuo sempre descrevendo o mundo em que vivemos, que assim se transforma naquilo que eu digo que ele é. (...)"

    Gore Vidal
    Império
    Editorial Presença, 1989


sexta-feira, novembro 05, 2004

No Porto nasceu Sophia, em 1919

Faria amanhã 85 anos.

        • Aqui

          Aqui, deposta enfim a minha imagem,
          Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
          No interior das coisas canto nua.

          Aqui livre sou eu - eco da lua
          E dos jardins, os gestos recebidos
          E o tumulto dos gestos pressentidos,
          Aqui sou eu em tudo quanto amei.

          Não por aquilo que só atravessei,
          Não p'lo meu rumor que só perdi
          Não p'los incertos actos que vivi,

          Mas por tudo de quanto ressoei
          E em cujo amor de amor me eternizei.

      Sophia de Mello Breyner Andresen
      Dia do Mar, 1947


P.S.
Quero deixar registado o meu lamento pelo desaparecimento do mais belo de entre os blogs que conheço - Janela Indiscreta


quinta-feira, novembro 04, 2004

Este meu país, provinciano e irreformável

É uma visão cinzenta sobre um país provinciano e irreformável, o que perpassa na leitura dos textos que ultimamente venho lendo.

Há poucos minutos uma amiga escrevia-me: "Não visto o cinzento deste tempo... Entristece-me."

Há mais de cem anos atrás, este mesmo olhar transparecia nos escritos dos "Vencidos da Vida".

Também eu sinto o frio a instalar-se e o meu olhar regista esse tom monocromático.

P.S.
Mais um alerta a propósito da situação degradante que se vem vivendo na comunicação social: José António Barreiros abandona o Diário de Notícias e inicia um blog - A Revolta das Palavras.
Queira inteirar-se do que se passa, seguindo o link.
Eu fui alertado através do blog de Pacheco Pereira.


quarta-feira, novembro 03, 2004

A Feira

A feira terminou e nada me importou. Já não me importa mais. É, para mim, uma coisa do passado; já só vive na nostalgia da minha juventude.
Por isso gostaria de recordar convosco o que o ano passado aqui escrevi (com data de 31 de Outubro):



terça-feira, novembro 02, 2004

SONETO

Terminada a evocação dos poetas de Poesia 61, permitam-me ficar, um pouco mais, com um poeta deste meu Algarve, que me fez companhia, com os seus poemas, numa daquelas tardes chuvosas da semana que findou.

Nuno Júdice

        • SONETO

          Durante estes anos, outonos e invernos,
          na melancolia de tardes de piano e alaúde,
          a chuva caiu com os seus vagares eternos,
          fez-se noite como cai um tampo de ataúde.

          E dediquei-me a registar estas mudanças,
          a ver a diferença entre negro e cinzento,
          ouvindo a música de um choro de crianças
          e o eco sombrio de um fundo lamento.

          Talvez o amor me servisse de horizonte
          se não fosse esta névoa sobre o mar.
          Poderia a manhã nascer de qualquer lugar

          como se a luz brotasse de alguma fonte.
          Acordo a alma com um brusco empurrão,
          e mostro-lhe a vida num aceno de mão.

      Nuno Júdice
      Rimas e Contas, 2000