Quem não lê, é como quem não vê
(...) Também já lhe acontecera ver o botão referente à sua senha tapado com um papel. Apresentou a sua queixa a uma senhora de bata branca que lhe retorquiu:
- «Não vê esse painel grande aí em cima dos guichets a dizer quais as especialidades que foram transferidas para o Novo Edifício!?»
O Novo Edifício, que o informaram ser em frente das Urgências, e as Urgências, que o informaram ser em frente do Novo Edifício, fora uma situação nova e mais confusa, a exigir uma total exploração de novos procedimentos.
- «As pessoas não são fáceis!», exclamava o Carlos de si para si.
Punha-se a estudar os rostos e os olhares. Algumas, de boa feição e aparentemente disponíveis, nem sempre reagiam com disponibilidade; revelavam-se antipáticas e respondiam grosseiramente. Outras, de má catadura, com ar apressado, por vezes mostravam-se disponíveis e eram até capazes de alguma ternura e respeito pela sua idade e condição.
Nesse dia, quando Carlos conversava com o médico, disse-lhe que não mais viria à consulta.
- «O Sr. Doutor passa-me estes comprimidos muito caros e diz-me sempre que está tudo bem. A minha reforma mal chega para comer. Sabe quanto me custa vir aqui?»
Quando Carlos inquiriu o médico sobre o custo da sua viagem, estava a referir-se ao dinheiro. Nunca lhe revelaria a sua odisseia até chegar ali, que ainda incluía o regresso a casa, com todas as vicissitudes.
- «Quem não lê, é como quem não vê. Tem que aprender tudo de cor, como os cegos!», comentava para si.
Ainda andara na escola e aprendera números e letras, mas ano após ano, a trabalhar, de manhã à noite, sem fazer uso dessas "coisas", como ele diria, acabou por esquecer.
- «Bem falta me têm feito, depois desta maldita doença que um dia me há-de matar!»
sexta-feira, agosto 26, 2005
Um Conto (XII) - 2ª parte
quinta-feira, agosto 25, 2005
Um Conto (XII) - 1ª parte
(A 2ª nota é uma montagem fictícia)
Quem não lê, é como quem não vê
Carlos, que vivia só, depois da morte da sua mulher, há algum tempo, fora acometido por uma doença crónica. Regularmente, de seis em seis meses, deslocava-se ao Hospital Central da sua região, a cerca de 80 km, para observação médica.
Cedo, pela manhã, evocava o procedimento adequado e marcava no telefone o número da praça de táxis da cidade mais próxima, a 12 km da sua aldeia. Em cerca de meia hora estava a comprar o bilhete de comboio.
A viagem, depois, era bem mais demorada. Finalmente na estação de destino, conseguia com facilidade o táxi que o conduziria ao hospital.
Nem sempre assim acontecia.
Já lhe sucedera haver um vizinho que ia à capital nesse dia e o deixara directamente à porta do hospital. Outras vezes apanhara boleia até à cidade e daí um autocarro até à estação, mas ultimamente não havia esse autocarro de ligação e então ia a pé, uns 2 km, se tivesse tempo, ou de táxi, se o tempo escasseasse.
Na capital receava sempre não apanhar um táxi. Sucedera-lhe uma vez e não foi fácil chegar ao hospital, numa cidade grande, que desconhecia, e sem indicações que pudesse utilizar. Chegara tarde à consulta e teve que cumprir de novo, uma semana depois, esta peregrinação que lhe coubera em sorte.
Já no hospital, dirigiu-se directamente ao edifício das Consultas Externas e retirou a senha com o seu número de espera, depois de ter pressionado o botão referente à sua especialidade, de entre vários outros, para outras tantas especialidades.
Agora, toda a sua atenção se concentrava nos vários quadros com algarismos, tentando descobrir o momento em que um dos quadros revelasse algarismos iguais aos que a sua senha ostentava.
Já lhe sucedera apresentar a sua senha com algarismos iguais ao do quadro e ouvir dizer, do outro lado do balcão:
- «A sua senha não é desta especialidade. Aguarde por esse número dois guichets à sua esquerda.» (...)(Continua amanhã)
terça-feira, agosto 23, 2005
Um poema e a promessa de um conto
Uma açoreana passou por aqui outro dia, na rota de Vitorino Nemésio, e estranhou a ausência de Antero na minha "colecção de poetas". É Antero que vos trago hoje e a promessa de mais um dos meus contos na próxima sexta-feira. Acontece que, mais longo do que o habitual, dividi o conto em duas partes; a primeira parte será aqui publicada na quinta-feira.
- Tormento do Ideal
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,
Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.
Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.
Recebi o baptismo dos poetas,
E, assentado entre as formas incompletas,
Para sempre fiquei pálido e triste.
Antero de Quental
Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa
Eugénio de Andrade
Campo das Letras, Porto, 2001
P.S.
Hoje, 24, exultei de alegria com a notícia da reabertura, após completo restauro, do Teatro Mascarenhas Gregório. Podeis aceder à notícia em www.silves.web.pt, um site sobre Silves que mantenho há mais de oito anos, e cuja divulgação agradeço.
Entretanto, com esta notícia, ganhou extrema actualidade um post que aqui deixei em (clique no sublinhado) 8 de Janeiro de 2004.
segunda-feira, agosto 22, 2005
Em nome da paz e de um certo deus
© Muhammed Muheisen/AP/Público
Entre as imagens de confronto e desespero dos colonos, esta outra de pai e filho, palestinianos, que alegremente se banham nas águas deste mar de Gaza, que crêem pertencer-lhes.
São estes mitos velhos em luta pela sobrevivência, num confronto político-religioso de que se não vê o fim; em nome da paz e de um certo deus.
www.coexistence.art.museum
quarta-feira, agosto 17, 2005
A Feira Medieval passou por aqui
Têm-me perguntado, com certa frequência, o que achei da Feira, como quem procura uma nota dissonante, uma apontamento polémico, algo que fuja ao tom generalizado e acrítico da apreciação comum. O que tenho a dizer já o disse o ano passado. Faça o favor de ler clicando aqui (no sublinhado).
Reafirmo que me diverti, que gostei, que me agradou, que foi bom, mas... que nada se alterou de fundamental. De Feira Quinhentista passou a Feira Medieval. Saíram os Camões, os Cabrais e os Gamas, os muçulmanos foram colocados fora da Medina, os judeus é como se não existissem, apesar de parte da Feira ter lugar na antiga judiaria.
A programação está demasiado dependente da empresa contratada para a animação geral, particularmente vocacionada para a Idade Média, simbolicamente estereotipada nos modelos do cinema americano. A culpa não é dessa empresa, certamente. A Câmara poderia contratar, eventualmente com a mesma empresa, um modelo diferente, que distinguisse o que se passa em Silves do que se passa em todas as outras povoações com castelo pelo país fora, numa moda que algum dia começará a enfastiar.
Entretanto a Feira cresce, crescerá ainda bastante mais e vamos ficar deslumbrados com o seu "sucesso", sem querer olhar para os perigos da massificação e inevitável desgaste da sua imagem.
Definam-se estratégia e objectivos. Talvez se conclua pela necessidade do reforço da nossa identidade, pela aposta em episódios que recriem a história local, sem complexos em relação ao seu período mais brilhante e que mais carácter confere à cidade; o da presença islâmica. Talvez se questione esta teimosia em investir na época alta, trazendo mais gente, que pouco ou nada contribui para a economia local numa época em que a oferta hoteleira (incluo obviamente os restaurantes) está esgotada na sua capacidade. Talvez se descubra que há novas tendências de procura turística que contrariam a massificação, como se revelava outro dia no Seminário sobre Turismo e Desenvolvimento, que decorreu em Silves, por iniciativa da autarquia.
Afirmava um dos conferencistas desse Seminário, referindo-se ao turismo de massas em centros históricos:
«Quando o turismo destruir a identidade da cidade, ele deixa de existir.»
P.S.
João Cardoso, Director da companhia de teatro que garantiu a animação da Feira Medieval de Silves, Viv'Arte, comentou o meu post acima. Convido-vos a ler esse comentário, seguido do meu próprio, clicando aqui.
quarta-feira, agosto 10, 2005
Somos o que comemos
Sou o que como.
Sou o que vejo, oiço, cheiro, saboreio, sinto.
Sou o que leio, penso, discuto, elaboro.
Sou, no dizer de Ortega y Gasset, «eu e a minha circunstância».
Poderemos ser senhores das nossas preferências e decisões?
Quando comemos no restaurante que a publicidade, a proximidade, ou outra motivação qualquer nos levou a preferir, apresentam-nos, para que se escolha, a ementa que eles sugerem. Mesmo em casa, quem cozinha está balizado pelas ofertas do mercado e pelos hábitos forjados na infância, adaptados ao longo da vida.
Quanto aos sentidos, nada há de mais enganador. As informações sensoriais são tratadas no cérebro, que actua como um filtro cultural que se refina no convívio social, nas leituras, no cinema, na televisão, nas rádios, nos jornais, através de outras e variadíssimas formas de expressão, ao sabor das circunstâncias e dos condicionamentos.
Ora!
Quando assistimos a intervenções do capital financeiro comprando, abrindo e fechando jornais e estações de televisão, rádios e editoras, agindo em quase exclusiva conformidade com os interesses publicitários e a satisfação do lucro, moldando os gostos e as opiniões de enormes massas de gente em busca de uma identidade que se dilui e perde nas grandes urbes do anonimato.
Quando sabemos dos lobbies que pressionam instâncias governamentais, infiltrando-se nos aparelhos partidários, fazendo cair ministros, favorecendo investimentos do seu interesse, governando na sombra, apoiando ou retirando apoio aos partidos conforme os interesses financeiros da ocasião.
Quando nos deparamos com tudo isto, apesar dos filtros culturais, e nos vamos apercebendo, ao longo dos anos, que a um dado governo sucederá outro, que governará da mesma maneira apesar de se afirmar diferente, porque quem de facto manda não são eles nem essa classe média que dizem decidir o sentido do voto.
Quando ainda nos parece ser possível o livre arbítrio e o uso da nossa capacidade de decidir, mas sabemos bem lá no fundo que nada de fundamental se irá alterar a partir das nossas decisões e intervenções, não nos apetece perguntar se não seremos mesmo, como no conto abaixo, personagens de banda desenhada?
P.S.
1. Apesar da democracia nos ir permitindo saber notícias como a que se segue, que atingirá poucos e interessará ainda menos, permitam-me que a espalhe por mais gente: Destruição de vestígios romanos pode embargar campo de golfe.
2. Já deve ter dado para entender que o Verão gera algumas intermitências no funcionamento deste blog. Já pouco flui, nesta época, por este rio da blogosfera.
sexta-feira, agosto 05, 2005
Um Conto (XI)
Alienação
O constrangimento era absolutamente insuportável.
Não era senhor das suas próprias ideias. Nem a mais vulgar das decisões lhe era permitida. Até o simples acto de se deslocar era cometido de momento a momento. O guarda-roupa, dos sapatos ao casaco ou blusão, nem sequer lhe era proposto escolher. Roupa interior, nem vê-la. Podia frequentar um café ou um bar, ir ao cinema, ao ginásio, ao teatro, à ópera, a um concerto. Vibrar no futebol, numa corrida de cavalos, num combate de boxe. Confrontar-se com o perigo de um tiroteio de rua, do assalto a um banco. Passear pelo jardim ou exercitar-se na alameda. Visitar um museu ou uma galeria de arte. Trabalhar. Viajar. Nunca lhe competiria a menor das decisões.
Até o falar! Ainda por cima com palavras que não eram as suas.
Falava por balões.
Não tinha como desistir. Não havia como deixar de ser personagem de banda desenhada.
P.S.
A 6 de Agosto, para não esquecer
HIROSHIMA
quinta-feira, agosto 04, 2005
Odeceixe à noite
É pelo final da tarde e início da noite que os restaurantes, os bares, os largos, as ruas se agitam, num frenesim que desmente a calma e o sossego da tarde (não patente na fotografia, pois tive que aguardar um momento menos agitado, para poder prolongar um pouco a duração da exposição). Também ainda não era Agosto, o mês das grandes invasões, se bem que em nada se comparem com as que acontecem no litoral algarvio.
Odeceixe renovou-se arquitectonicamente. A intervenção neste largo, em minha opinião, conserva os sinais mais identificativos da sua memória, mantendo o fontanário e algumas árvores, e devolve a praça pública à fruição dos seus residentes e visitantes, afastando as viaturas a partir das 8 da noite. Saibam os proprietários dos edifícios que rodeiam o largo manter as suas fachadas, apesar de algumas alterações menos felizes nos finais dos anos 70 e princípos de 80.
Na noite de 27 choveu (situação ímpar neste prolongado tempo de seca) e todos procuraram abrigo sob os toldos, deixando o largo vazio.
Bati a foto a preto e branco para evidenciar os reflexos da iluminação pública. Aí está agora, mais visível, o fontanário que mencionei atrás, já sem a inestética companhia da cabine telefónica de outrora.
P.S.
Termino aqui esta série de posts sobre a minha semana de férias por Maria Vinagre e Odeceixe.
Amanhã trar-vos-ei um novo conto.
quarta-feira, agosto 03, 2005
Odeceixe
A ribeira de Seixe encontra a sua foz na Praia de Odeceixe.
Odeceixe, vila, ainda dista alguns quilómetros da praia, num trajecto junto ao rio (ao fundo, na foto, divisa-se o casario branco da vila).
Odeceixe tem casinhas coloridas e brancas, bem equilibradas, recantos com graça. É aqui que se hospedam os turistas e veraneantes, clientes da oferta turística, a maior riqueza económica da vila.
A tarde é quente, arrastada, a lembrar o Alentejo ali ao lado (na outra margem do rio). Só à sombra se encontra acolhimento, depois da sesta, antes ainda dos frequentadores da praia começarem a regressar.
terça-feira, agosto 02, 2005
Praia de Odeceixe
A Praia de Odeceixe é este trecho de paraíso sobre o mar, na Costa Vicentina, no oeste algarvio, a poucos quilómetros de Maria Vinagre.
Vi as minhas filhas crescer aqui, em cada verão. A semana passada partilhámos, ao sol, esses prazeres da praia e recordámos episódios de outras épocas onde o crescimento também acontecia no contacto com amigos, das mais diversas paragens, nos interesses partilhados, na exuberância da adolescência, no despertar dos sentidos.
Odeceixe será sempre um lugar da nossa memória familiar.
P.S.
Para os que, de Maria Vinagre, só conhecem as casas junto à EN120 :-), aqui têm Maria Vinagre, vista do espaço, o que certamente não acontece com muitas outras localidades por esse mundo fora, num serviço de earth.google.com.
segunda-feira, agosto 01, 2005
Maria Vinagre
Em Maria Vinagre nasceu a minha mulher; mais exactamente na Baía dos Tiros, próximo do mar.
Três fotos: A oriente, a Foia, o ponto mais alto da Serra de Monchique; a ocidente um pôr-do-sol, por detrás das árvores, sobre o oceano; junto à EN 120, entre Aljezur e Odeceixe, o mais visível arruamento de Maria Vinagre, onde identifico a-casa-da-Tia-Vitalina, hoje em dia do primo Armando, e onde o Verão se prolongava Setembro adentro.
Pelos anos 70 ainda a casa era de taipa, o tecto de telha vã, não havia luz eléctrica nem água canalizada e ficávamos até tarde, na noite, à luz do candeeiro a petróleo, jogando monopólio ou outro qualquer desses jogos ditos de sociedade, ou simplesmente conversando, trocando memórias e ideias.
Os amigos visitavam-nos.
Hoje a casa de férias tem esta chaminé, junto à açoteia de onde tirei as fotografias, e quando ficamos até tarde, na noite, o que é raro acontecer em casa, felizmente (?), lemos ou vemos televisão, bocejando.
Os amigos encontramo-los em Odeceixe no restaurante, no bar ou no Largo.
Quando chegámos, deparámo-nos com o alpendre, sobre a porta, já habitado por esta simpática andorinha, que não tem culpa da porcaria que todos os dias é necessário limpar, só porque a sua mãe resolveu aqui fazer o ninho.
P.S.
Daqui vai um abraço para todos os amigos do Encontro Blogalgarve (foto).