O texto que vos trago foi escrito neste mesmo blogue em 2 de Novembro de 2006, pela Feira de Todos os Santos.
Fui ao ensaio, antes da estreia.
Escondi-me nos bastidores.
Dizem que já nada é como era, mas eu, com os olhos de quem está por detrás, embora dentro do palco, entendo que esse é o olhar de quem assiste à cena e não faz parte dela.
Por dentro, tudo se mantém, igual, como o próprio Homem, com os seus anseios e as suas misérias.
Avistei a cenografia do Carrossel 8 e pude apreciar, apesar dos motivos pintados de novo, a sugerir um novo gosto, mais ao gosto dos novos clientes, a forma como o maquinista interpreta o seu trabalho, como conhece cada uma das porcas que apertam aquele carril, como sabe da sequência da montagem do camelo ao lado da girafa, que fica por trás do leão que, cobiçoso, observa a gazela.
Como sabe da data em que pela primeira vez o carrossel se apresentou em cena, na Feira de Famalicão, como fazia a volta a Portugal, de Norte e Sul, e como se ficou, a rolar no mesmo lugar, até que o recuperaram, para esta nova peça, quando fechou a Feira Popular em Lisboa.
Tudo isto de improviso, sem recurso a texto, porque tudo flui como um dia após o outro, porque não há dramatização quando o drama é a própria vida, porque não há enredo enquanto a vida se vive.
Senti essa verdade quando o Mário Martins, o contra-regra, me falou na cena da Esfera da Morte em bicicleta a pedal.
O Mário é filho do Zé Martins, esse herói do combate à força centrífuga, negando a toda a hora uma queda na vertical.
O Mário ainda vive em cena, como um velho ator, que só abandonará o palco quando o abandonar de vez, definitivamente.
Saímos dos bastidores e evocámos a saudade nuns copos de cerveja, olhando as farturas, as amêndoas, as castanhas, as bolotas, os peros, em fim de tarde, com o sol a baixar, já numa luz coada, marcando o seu tom outonal sobre os alhos e as cebolas, nesta Feira de Todos-os-Santos do ano de 2006.
P.S.
Esta conversa com o Zé Martins, cujo pai viveu em Alcantarilha, onde tinha oficina para bicicletas e era para a rapaziada da minha idade um autêntico herói na Esfera da Morte, onde pedalava em todos os sentidos e direções, de cabeça para baixo, para cima ou de lado, sugeriu-me este texto, porque pude inteirar-me de perto das dificuldades do dia a dia, montando e desmontando o espetáculo de feira em feira, em precárias condições de vida.
Mais ainda pelo sorriso que revelava nos olhos quando me descrevia as suas pequenas histórias do mundo dos feirantes.
E ainda por me aperceber de quanto deste esforço resulta no deslumbramento e na alegria da criançada, de quando eu próprio fui menino, e hoje ainda vislumbro nos olhos dos meus filhos e dos meus netos.