quarta-feira, novembro 29, 2006

Um Conto (XXIII)

  • Em noite de mudança da hora legal

    Era tarde. Resolvi regressar.
    Desci, compassadamente, a avenida sobre o rio, vendo partir alguns barcos para a faina do mar. As luzes de bordo reflectiam-se no negrume da água, sugerindo-me, na noite, uma qualquer fantasmagoria que me inquietou. Aproximei-me do carro. Olhei o meu relógio. Eram precisamente duas horas da noite. Abri a porta, sentei-me ao volante, coloquei o cinto de segurança e ia rodar a chave na ignição quando dei pela sua presença, sentada, a meu lado.
              - Estavas aí? Como vieste?
              - Ora! Resolvi vir ao teu encontro.
    Beijou-me, longamente, e perdemo-nos em jogos de amor. Nem dei conta do tempo que ficámos ali, naquele rodopio estonteante, naquele nosso deslumbramento, naquela tranquilidade dos corpos saciados, naquele remanso doce do amor.
              - Vamo-nos. Faz-se tarde.
    Compus-me de novo ao volante, rodei a chave. No rádio o locutor informava:
              «São duas horas da madrugada».
              - Duas horas? Mas, eram duas horas quando...
    Olhei para o lado. Ela não estava lá.

    Terei sonhado? Pareceu-me tudo tão real.

    Ao chegar a casa consultei o meu relógio. Eram quatro horas.
    Cerca de dez minutos depois chegava ela. Surpreendido, perguntei-lhe:
              - Onde estiveste?!
              - Onde estive!? Vieste tão apressado que nem deu para te acompanhar, ao longe.
              - ?!?!?! Vim... normalmente... até demorei bastante.... parece-me.
              - Deves ter demorado uma hora, mais ou menos.
              - Só uma hora?
              - Sim, uma hora. Pouco antes de chegar, o rádio, no carro, informava que eram três horas da madrugada.
              - Mas no meu relógio são... Ah


terça-feira, novembro 28, 2006

Mário Cesariny faleceu

© Instituto Português do Livro e das Bibliotecas
© Instituto Português do Livro e das Bibliotecas


Em homenagem a Cesariny, apetecia-me passar aqui a sua Pastelaria, mas já o fiz por duas vezes (pode, no entanto, lê-la aqui).
Recordemo-lo, então, com um seu outro belo poema:

  • You are welcome to Elsinore

    Entre nós e as palavras há metal fundente
    entre nós e as palavras há hélices que andam
    e podem dar-nos morte       violar-nos       tirar
    do mais fundo de nós o mais útil segredo
    entre nós e as palavras há perfis ardentes
    espaços cheios de gente de costas
    altas flores venenosas       portas por abrir
    e escadas e ponteiros e crianças sentadas
    à espera do seu tempo e do seu precipício

    Ao longo da muralha que habitamos
    há palavras de vida       há palavras de morte
    há palavras imensas, que esperam por nós
    e outras, frágeis, que deixaram de esperar
    há palavras acesas como barcos
    e há palavras homens, palavras que guardam
    o seu segredo e a sua posição

    Entre nós e as palavras, surdamente,
    as mãos e as paredes de Elsinore

    E há palavras nocturnas palavras gemidos
    palavras que nos sobem ilegíveis à boca
    palavras diamantes palavras nunca escritas
    palavras impossíveis de escrever
    por não termos connosco cordas de violinos
    nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
    e os braços dos amantes escrevem muito alto
    muito além do azul onde oxidados morrem
    palavras maternais só sombra só soluço
    só espasmo só amor só solidão desfeita

    Entre nós e as palavras, os emparedados
    e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny
Quinze Poetas Portugueses do Século XX
Selecção e Prefácio de Gastão Cruz
Assírio & Alvim, Lisboa 2004

segunda-feira, novembro 27, 2006

Parabéns, Torquato!

Torquato da Luz cumpriu ontem mais um aniversário. Venho presenteá-lo com o seu próprio trabalho criativo.

© Torquato da Luz
Acrílico sobre tela (pormenor)

  • Dúvida

    A dúvida é a única certeza:
    nada é seguro, tudo é vago e incerto.
    Nem sempre a natureza
    favorece o clima
    que gera oásis no deserto.
    Gostava de crer acima
    de qualquer hesitação
    ou egoísmo,
    mas não me é possível, não,
    esconder o cepticismo.

    Só não vacila quem crê
    apenas no que vê.

Torquato da Luz
Ofício Diário

sexta-feira, novembro 24, 2006

Um Cont(inh)o (XIII)

Aqui está algo que não fazia há algum tempo - um microconto (cerca de 50 caracteres):


  • Andei perdido no tempo que me roubaram no dia em que a hora mudou.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Esquecido num cigarro

Fumando um cigarro, Tavira. Verão de 2006, © António Baeta Oliveira


  • É no cigarro que me esqueço
    no fim
    da tarde que devagar desce a calçada.

    O muro a que me encosto
    ficará
    numa baça lembrança
    do que foi
    a minha desvanecida imagem
    do que fui.


Recordando uma antiga fotografia comentada - Diversidade de opinião (clique) - publicada em 22 de Agosto de 2003.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Em Silves, vendo o tempo passar

Luiza Neto Jorge viveu em Silves. Desse tempo ficou uma publicação que recebeu o título Silves 83.


  • Águas passadas
    não moem rodízios
    de moinhos

    Águas passadas
    não moem ruínas
    de moinhos

Luiza Neto Jorge
Poesia
Silves 83
Assírio & Alvim, Lisboa 2001

P.S.
O título que dei ao post tem a ver com algum desencanto que se vive na cidade; desmazelo e obras por todo o lado, paradas, sem fim à vista, ausência de iniciativas culturais, de vida comercial, de vivência social, de perspectivas.
Um marasmo.
O problema maior é que, quando se trata de civilização, ficar parado não significa ficar no mesmo estádio de desenvolvimento, mas recuar, no que chamaria de involução.

sexta-feira, novembro 17, 2006

A várias mãos

Amanhando peixe, Silves 2005, © António Baeta Oliveira

  • Mãos
    túrgidas no amanho do peixe
    ágeis sobre as teclas de um piano
    calejadas no esforço da picareta
    hábeis na moldagem do barro
    nervosas num momento de tensão
    humedecidas na convulsão do choro
    frementes no apelo do desejo
    largas na expressão da dádiva
    abertas ao acolhimento
    em punho na explosão da raiva
    trucidadas num acidente de trabalho
    envelhecidas pelo passar do tempo
    quentes num coração frio
    frias num coração
    quente quando num gesto de afeição.


Recordando uma outra fotografia comentada - Como uma almenara (clique) - publicada em 8 de Agosto de 2003.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Timbuktu, uma das 21 Maravilhas do Mundo

© Melissa Enderle
      (Clique na imagem para mais fotos)
  Thank you, Melissa


Timbuktu é a minha cidade mítica, a inatingível, aquela para onde vão as caravanas que se dirigem às paragens mais remotas e donde regressam as que vieram dos confins do mundo.
Amin Maalouf, escritor de origem libanesa, um dos mais conceituados romancistas na vertente do romance histórico, levou-me a Timbuktu (Toumbouctou, em francês) na caravana de um dos mais prestigiados viajantes de sempre, Leão, o Africano, editado em português pela Bertrand, cuja leitura me impressionou profundamente. Recordo ainda outro lugar remoto e mítico, cruzamento de caravanas e civilizações, sobre o qual Amin Maalouf escreveu, também em edição da Bertrand - Samarcanda.

Pois não é da cidade mítica que vos quero falar. É da cidade real, da actual cidade de TIMBUKTU, no Mali, próxima das margens do Níger, famosa há mais de um milhar de anos; é da sua universidade com milhares de estudantes, do inestimável espólio dos seus livros milenares, das suas construções em terra, desta cidade que é Património da Humanidade (UNESCO).

Timbuktu é uma de entre as 21 candidatas à eleição das Novas 7 Maravilhas do Mundo.

Lisboa será o palco onde se dará a conhecer o resultado da votação que envolve já perto de 20 milhões de pessoas e onde se conta com 100 milhões de intenções de voto.

Quantos se lembrarão destas modestas construções de terra, em Timbuktu, quando a atenção de cada povo se centra sobre os exemplares mais significativos da sua região e onde países como os Estados Unidos, o Japão, a Rússia, a China, dos mais populosos do mundo, têm os seus próprios exemplares em que votar? Quantos africanos terão acesso à Internet ou até ao telefone para fazer valer o seu voto regional?

Vote, e quando votar, lembre-se de TIMBUKTU entre as suas preferidas Sete Maravilhas do Mundo (clique para votar).

NOTA:
Não perca estas outras e muito belas fotos, aqui. (clique)

terça-feira, novembro 14, 2006

Novos poetas algarvios (VII)

Termino hoje esta ronda pelos cinco poetas que constam da Antologia dos Novos Poetas Algarvios. Os poemas que aqui transcrevi, escolhidos de entre alguns outros, obedeceram a opções de extensão, adequando-os a este tipo de suporte, e de meu gosto pessoal. Não traduzem certamente as opções dos seus autores ao colocá-los por determinada ordem ou até as da organizadora da publicação, Maria Aliete Galhoz, quando escreve na apresentação:



  • «A poesia não é mais a visitação do "lugar ameno" real ou num imaginário possibilitado.
    A poesia destes cinco "novos poetas algarvios" não se compraz em si, não glosa estereótipos, nem de paisagem nem do "sujeito".»

Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005

segunda-feira, novembro 13, 2006

Novos poetas algarvios (VI)



  • Fumar o sopro da vida, travar-te no pulmão, reter-te respirar-te
    Constróis-me como num parto, vivo por dentro de ti como um feto
    És o músculo que empunha o martelo, o ferreiro que bate, aperfeiçoando,
    [o metal
    O cavalo alado da minha juventude, excitando-me, amedrontando-me,
    [atiçando-me
    O abanador que espalha a minha fogueira, que espalha o meu calor
    O índio que me cura espetando agulha
    És a árvore, eu era o fruto caído no chão que germinou com o teu cheiro
    E agora estamos os dois aqui, olhando-nos como vitrais de Igreja
    Permanecemos
    Com o vento abanando nossos frutos verdes

Ruben Gonçalves
Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005

sexta-feira, novembro 10, 2006

Ao jeito de um fotoblog (III)

Cigarros e jornais, 2005, © António Baeta Oliveira


  • Denúncia da sua presença.
    Tensão da sua ausência.


A partir de hoje vou deixar de usar aquele título - "Ao jeito de um fotoblog" - pois pude aperceber-me que uso com frequência, desde o primeiro mês de existência deste blog, comentar, de forma pretensamente poética, algumas fotografias, de minha autoria, que aqui vou colocando.
Continuarei a usar a fotografia comentada, mas com titulação própria.
Irei também recordando alguns desses posts com fotografias comentadas, em anos anteriores, de cada vez que aqui publicar uma nova fotografia com um comentário a seu propósito.

Aqui vai a primeira - Entardecer (clique) - publicada em Julho de 2003.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Novos poetas algarvios (V)

  • AVÉ MUNDI

    LE MONDE EST MORT...
    VIVE LE MONDE!
    O mundo morreu.
    Fui hoje
    Ao seu funeral.
    A tristeza
    Era muita,
    Tanta,
    Que me esqueci
    Do meu...

Ricardo Paulo
Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005

P.S.
Ricardo Paulo é natural de Silves.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Novos poetas algarvios (IV)



  • Boca aberta que tens plátano em ti,
    Dessa copa aberta e agra
    Abisma-me o contorno de giz, quarto encerrado, voz tácita.
    O gesto de morte desse braço aberto de meio,
    Mãos esculpidas de pedra
    Têm nas unhas de mármore o sangue calcinado,
    Pintado em tons de aspar,
    Rastreio poluto, asco asceta.
    Sôfrega pulsa ânsia
    Apura o odor desse peso que caminha lento na incerteza
    Do fatídico.

Pedro Sousa
Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005

terça-feira, novembro 07, 2006

Novos poetas algarvios (III)



  • Fixamos num olhar o engano mútuo
    trocamos umas palavras por necessidade de esclarecimento
    separamo-nos       nessa noite       tão frios
    na proximidade inventamos uma distância

    Decidimos pelo melhor um beijo no rosto
    traçando uma linha de amizade
    insuficiente para o estado em que acabamos
    com vontade dos lábios um do outro

João Bentes
Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005

segunda-feira, novembro 06, 2006

Aniversário de Sophia

Sophia nesceu no Porto a 6 de Novembro de 1919.

Recordemo-la, no seu amor pelo Algarve.

  • A Conquista de Cacela

    As praças fortes foram conquistadas
    Por seu poder e foram sitiadas
    As cidades do mar pela riqueza

    Porém Cacela
    Foi desejada só pela beleza

Sophia de Mello Breyner Andresen
Algarve todo o mar
(Colectânea)
Dom Quixote, Lisboa 2005

quinta-feira, novembro 02, 2006

Pela Feira de Todos-os-Santos

Alhos e cebolas, Feira Anual 2006, © António Baeta Oliveira


  • Fui ao ensaio, antes da estreia.
    Escondi-me nos bastidores.
    Dizem que já nada é como era, mas eu, com os olhos de quem está por detrás, embora dentro do palco, entendo que esse é o olhar de quem assiste à cena e não faz parte dela. Por dentro, tudo se mantém, igual, como o próprio Homem, com os seus anseios e as suas misérias.
    Avistei a cenografia do Carrossel 8 e pude apreciar, apesar dos motivos pintados de novo, a sugerir um novo gosto, mais ao gosto dos novos clientes, a forma como o maquinista interpreta o seu trabalho, como conhece cada uma das porcas que apertam aquele carril, como sabe da sequência da montagem do camelo ao lado da girafa, que fica por trás do leão que, cobiçoso, observa a gazela. Como sabe da data em que pela primeira vez o carrossel se apresentou em cena, na Feira de Famalicão, como fazia a volta a Portugal, de Norte e Sul, e como se ficou, a rolar no mesmo lugar, até que o recuperaram, para esta nova peça, quando fechou a Feira Popular em Lisboa.
    Tudo isto de improviso, sem recurso a texto, porque tudo flui como um dia após o outro, porque não há dramatização quando o drama é a própria vida, porque não há enredo enquanto a vida se vive.
    Senti essa verdade quando o Mário Martins, o contra-regra, me falou na cena da Esfera da Morte em bicicleta a pedal.
    O Mário é filho do Zé Martins, esse herói do combate à força centrífuga, negando a toda a hora uma queda na vertical.
    O Mário ainda vive em cena, como um velho actor, que só abandonará o palco quando o abandonar de vez, definitivamente.
    Saímos dos bastidores e evocámos a saudade nuns copos de cerveja, olhando as farturas, as amêndoas, as castanhas, as bolotas, os peros, em fim de tarde, com o Sol a baixar, já numa luz coada, marcando o seu tom outonal sobre os alhos e as cebolas, nesta Feira de Todos-os-Santos do ano de 2006.


P.S.
Permitam-me um apelo à vossa participação em

                    (Clique sobre a imagem)