segunda-feira, julho 11, 2005

A vida continua

Londres, Inverno 2004, © António Baeta Oliveira

Foi com Londres ainda muito presente, a exaltar a sensibilidade, que regressei ao CAPa (Centro de Artes Performativas do Algarve) para assistir, se não à melhor, pelo menos a uma das melhores peças de teatro de toda a minha vida. O CAPa tem destas surpresas e esta não é a primeira. Disso já aqui dei conta, por mais de uma vez, nomeadamente em Outubro de 2003 (KIP).

Desta vez a responsabilidade coube a uma das companhias portuguesas que mais admiro - O Teatro da Garagem.

A luz, azulácea, acende lentamente, ao ritmo de um trecho musical que impõe uma sonoridade triste, angustiante e gradativamente grandiloquente. Avistam-se peças de mobiliário, três ou mais, de estilos característicos do princípio do século XX ou finais do XIX, todas ou quase todas com espelhos ou vidro, a reflectir o presente ou a sugerir o passado; o solo é uma camada de água, de um palmo de altura, a projectar por toda a sala cambiantes de luz, a lembrar um aquário, qual sítio de experimentação e observação de comportamentos. Ao centro uma estrutura móvel, de um material plástico, branco, onde, no decurso do enredo, algumas personagens se refugiam como num confessionário. Neste cenário evolui uma dama, descalça, de tiques aristocráticos, que abre e fecha gavetas, revisitando as suas memórias.

A Vida Continua é o título deste trabalho, cujo texto e encenação tem a assinatura de Carlos Pessoa. Um texto fabuloso, servido por uma cuidada e rigorosa encenação e cinco excelentes actores, entre eles Miguel Mendes, que sempre identifico como a face visível da companhia, e que me deslumbra, sucessivamente, pelas suas superiores interpretações. É uma peça dramaticamente irónica, cómica até, roçando o trágico, onde se vive um louco estado de decadência, que lentamente parece apodrecer, esvaindo-se naquela camada de água que torna mais lento e arrastado o movimento e onde se afundam todos os mitos que parecem gerar-se por afinidades, a partir de frases soltas, citações, sonhos, devaneios, enganos, prazeres, burlas, compadrios, truques, inconsequências, sugestão e reflexo de uma sociedade que chega ao fim, que se degrada e morre, enquanto... a vida continua.

P.S.
1 - Antes que as restrições orçamentais levem ao encerramento de espaços como este ou que a economia acabe por degradar, irremediavelmente, o já de si degradado estado cultural do nosso país, lembro o fim do Ballet Gulbenkian e deixo-vos este link, que apela à assinatura de uma petição dirigida ao Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian.
2 - Quero agradecer ao João, de Asul, ao Manuel, de Limites de Luz e ao Helder, de Contrasenso pela simpatia dos seus escritos a propósito do 2º aniversário do Local & Blogal. Um grande abraço ainda a todos os outros que a tal propósito se manifestaram nos comentários. Obrigado, amigos!

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