sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Em véspera de Carnaval

Ainda aqui não tinha feito figurar Álvaro de Campos, este algarvio de que tanto gosto. Lia-o, ontem à tarde, quando a propósito do depor ou tornar a pôr a máscara, me revi, criança, em época de Carnaval.
Máscara veneziana, Fevereiro 2006, © António Baeta Oliveira



  • Depus a máscara e vi-me ao espelho. -
    Era a criança de há quantos anos.
    Não tinha mudado nada...
    É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
    É-se sempre a criança,
    O passado que foi
    A criança.
    Depus a máscara e tornei a pô-la.
    Assim é melhor,
    Assim sem a máscara.
    E volto à personalidade como a um términus de linha.

Álvaro de Campos
Fernando Pessoa
POESIAS de Álvaro de Campos
Editorial Nova Ática

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Romance Popular

Alcáçova de Silves, Fevereiro 2006, © António Baeta Oliveira
  • A Moira Encantada1 2

    Meia noite além resôa
    Cêrca das ribas del mar,
    Meia noite já é dada
    E o povo ainda a folgar.
    Em meio de tal folguedo
    Todos quedam sem fallar,
    Olhos voltam ao castello
    Para ver, para avistar
    A linda moira encantada,
    Que era triste a suspirar.

    - Quem se atreve, ái quem se atreve
    Ir ao castello e trepar
    Para vencer lo encanto
    Que tanto sabe encantar?
    - Ninguem ha que a tal se atreva,
    Não ha que em moiras fiar;
    Quem lá fôsse a taes deshoras
    Para só desencantar,
    Grande risco assim corrêra
    De não mais de lá voltar.

    - Ái que linda formusura,
    Quem a podéra salvar!
    O alvor dos seus vestidos
    Tem mais brilho que o luar!
    Dôces, tão dôces suspiros
    Onde ouvil-os suspirar?

    Assim um bom cavalleiro
    Só se estava a delatar,
    Em amor lhe ardia o peito,
    Em desejos seu olhar.
    Tres horas eram passadas
    Neste continuo anciar.
    Cavalleiro de armas brancas
    Nunca soube arreceiar:
    Invoca a linda moirinha,
    Mas não ouve o seu fallar.
    Nada importa a D. Ramiro
    Mais que a moira conquistar;
    Vai subir por muro acima,
    Sente os pés a resvalar!
    Ái, que era passada a hora
    De a poder desencantar!

    Já lá vinha a estrella d'alva
    Com seus brilhos a raiar;
    No mais alto do castello
    Já mal se via alvejar
    A fina branca roupagem
    da linda filha de Agar.
    Ao romper do claro dia,
    Para bem mais se pasmar.
    Sobre o castello uma nuvem
    Era apenas a pairar.
    Jurava o povo, jurava,
    E teimava en affirmar,
    Que dentro daquella nuvem
    Vira a donzellinha entrar.
    Dom Ramiro d'enraivado
    De não poder-lhe chegar,
    Dalli parte, e contra os moiros
    Grande briga vái armar.
    Por fim ganha um bom castello,
    Mas... sem moira para amar.


1Versão de Estácio da Veiga
2Foi mantida a ortografia original

Algarve todo o mar
Colectânea
Publicações Dom Quixote, Lisboa 2005

P.S.
A propósito desta paixão de D. Ramiro por uma donzela árabe, remeto-vos para um post que aqui publiquei, em Junho de 2004, sobre o poema Dona Branca, de Almeida Garrett, onde Aben-Afan, o último rei mouro de Silves, se apaixona por D. Beatriz, filha de D. Afonso III. Basta clicar aqui.
Nesse local foi efectuado um link, que já não funciona, e que remetia para o poema do nosso grande romântico. Os que queiram ter acesso ao poema completo, em versão .pdf podem usar este link actualizado..

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

O milagre de Fátima torna-se cada vez mais real

A apreensão de um grande volume de cocaína na região de Silves projectou o nome da cidade nas páginas da grande maioria dos órgãos de imprensa, de difusão nacional e regional.
A notícia é tema de conversa em todos os locais de encontro e paira no ar um estranho orgulho colectivo, a propósito de uma notícia que nada tem a ver com a cidade e os seus habitantes.

A realidade é o que passa na televisão e nos jornais. Com esse conhecimento podemos identificar-nos com os outros através de algo que partilhamos em comum.

Silves tornou-se real.

Ontem, nos três principais canais generalistas da televisão portuguesa transmitia-se, em simultâneo, a trasladação do cadáver de Lúcia.
Todos fomos obrigados a tomar conhecimento.

O milagre de Fátima, esse então, torna-se cada vez mais real.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Um poeta do amor e da tolerância

Faz muito tempo que aqui não depositava um poema dos tempos do Al-Ândalus, dessa civilização que hoje é difícil reconhecer nas turbas exaltadas e violentas instigadas pelo islamismo (não confundir o islamismo, movimento político-religioso integralista, com o Islão).
Sobre este assunto é sempre importante reafirmar a existência de muitos homens e mulheres, muçulmanos, que se não revêem naquela ideologia e que, no meio das ondas da intolerância, continuam a resistir, com perigo das suas próprias vidas.

De Ibn 'Arabi (sécs. XII-XIII), natural de Múrcia, místico, filósofo, poeta, sábio:


  • Meu coração tornou-se capaz
    de assumir qualquer forma;
    ele é um pasto para gazelas e um convento para monges cristãos,
    um templo para ídolos e a Caaba dos peregrinos,
    as tábuas da Torah e o livro do Corão.
    Eu sigo a religião do Amor:
    qualquer que seja o caminho que o Amor toma,
    esta é a minha religião e a minha fé.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Olhares

O primeiro olhar, sobre a ponte, encheu-me de luz; dessa luz que só Lisboa irradia e se mistura com o brique dos telhados. Uma outra suspresa foi um submarino, à superfície, subindo lentamente o rio.
Depois Alcântara, Santos, as calçadas do Poço dos Negros e do Combro, com a ideia de renovar o meu olhar em Santa Catarina, cuja saudade perdura desde que morei na rua do Século, lá pelos meus vinte anos.
O trânsito e o estacionamento encaminharam-me para o Largo de Camões e, calmamente, o meu olhar demorou-se por aquelas ruas com Tejo ao fundo, como no cenário de Saramago em A Morte de Ricardo Reis.
Depois foram os Olhares Estrangeiros, no espaço da Fidelidade-Mundial; não tão estrangeiros assim, porque também conta com óptimos fotógrafos portugueses.
Seguiu-se um olhar fauve, no Museu do Chiado, onde gostei tanto de Amadeo entre o(s) Matisse(s)...

... nestes cafés de Paris, que o Chiado teima sempre em imitar.
Um olhar ainda na Trindade, à hora do lanche.
À noite, foi com os olhos fechados que melhor olhei Brad Mehldau.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Ingratidão

Alcáçova de Silves, Fevereiro 2006, © António Baeta Oliveira
Alcáçova de Silves - arco entre ameias

O POLIS de Silves não conseguiu cumprir o prazo que a si próprio se propôs.
O relógio, inaugurado com pompa e circunstância, acabou por não justificar o dinheiro que nele se aplicou.

Eu não estranhei que os prazos não fossem cumpridos e, como eu, suponho que muitos mais. Estranho seria assistir-se a um cumprimento de prazos. As "derrapagens" são quase que inevitáveis e este vocábulo, que me evoca sempre o ciclo vicioso das relações entre as obras públicas e os empresários da construção, virá, pela frequência do seu uso, a integrar de pleno direito, neste seu novo significado, o nosso léxico.
Mas, apesar do que já se sabia que iria acontecer, há sempre que encontrar explicações. Há que determinar o culpado.
No POLIS de Silves, como vim a saber por um panfleto que por aí circulou e confirmei na última Assembleia Municipal, a culpa foi atribuída exclusivamente à arqueologia; como se, com ou sem trabalhos arqueológicos, o atraso não se tivesse vindo a verificar na mesma.
E a culpa recai logo sobre a arqueologia, ela própria, na qual se escudaram objectivos, justificações e intenções que serviram de base aos projectos e à obtenção de financiamentos.

Porquê o POLIS em Silves?
Por ser uma cidade do interior algarvio, sem indústria, com um comércio incipiente, uma agricultura moribunda, serviços sem penetração no mercado, onde a autarquia é a principal empresa?
Não acredito nessa bondade, que nunca antes vi aplicada. Antes, certamente, pelo motivo pelo qual ainda hoje se mantém cidade, por via dos seus monumentos, do seu centro histórico, dos seus edifícios e do seu traçado, únicos no mundo, a conferir-lhe uma identidade que se não constrói senão com o tempo, a história, a arqueologia: antiga, medieval, moderna ou industrial.

A culpa do atraso do POLIS foi, afinal, atribuída ao próprio motivo que o justifica.

INGRATIDÃO!

As obras, do POLIS ou não, nesta ou noutras cidades, também se atrasam e a população queixa-se dos inconvenientes que isso lhes causa acusando entidades às quais se possa imputar responsabilidades: a autarquia, as empresas de construção, o governo, este ou aquele organismo ...

Em Silves, não; é voz pública de que os culpados são os "cacos", querendo significar a arqueologia, afinal aquilo que ainda é o grande pólo de interesse desta cidade, pois por informação que ouvi, de parte da direcção executiva do POLIS, também na última Assembleia Municipal, as recentes escavações do castelo revelaram:
          - uma basílica paleocristã, do séc. VII,
          - o Palácio das Varandas (XARAJIB), do séc. XI,
          - a alcaidaria ou Palácio do Infante, do séc. XV
,
revelações que, só por si e por cada uma delas, encheriam de expectativa e orgulho qualquer cidade do nosso país e justificariam qualquer atraso, sem acusações, a não ser as de não ter sido prevista esta tão previsível eventualidade.

Nenhuma entidade, nenhuma empresa, nenhuma instituição, com as suas bafientas burocracias e ineficácia operacional tem responsabilidade nos atrasos. Os "cacos", isto é, a arqueologia, que não pode responder pela responsabilidade do seu passado histórico, mas atrai à cidade um cada vez maior número de visitantes, é a responsável pelos atrasos do POLIS.

INGRATIDÃO!

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Brad Mehldau Trio


www.bradmehldau.com/mehldau

Hoje à noite estarei em Lisboa, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, expressamente para o concerto de Brad Mehldau Trio, de apresentação do seu último trabalho - Day is Done.

Trata-se de um dos meus preferidos pianistas de jazz, que só tem rival, no meu próprio gosto, em Bill Evans.

Partilhando convosco um pouco da sua criatividade escolhi um tema, preferencialmente curto dadas as condicionantes deste tipo de comunicação, que se não presta a exposições mais longas.
Por esse motivo, o tema que escolhi não integra este seu último álbum, mas um outro, de 1999.
Ouçamo-lo!

Brad Mehldau
Elegiac Cycle
Lament for Linus

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quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Amnistia Internacional

Solicitou-me a Amnistia Internacional (Secção Portuguesa) a divulgação da informaçao que se segue:

Sabia que lhe é possível doar parte do valor do seu IRS, sem perder dinheiro com isso?

O Estado permite que 0,5% do imposto liquidado reverta a favor de uma Instituição de Utilidade Pública, ou seja, o Estado envia 0,5% do que iria pagar para a instituição que entender. Para isso basta que essa instituição esteja registada como Instituição de Utilidade Pública, o que acontece com a Aministia Internacional (Secção Portuguesa), nos termos do despacho de 3/4/92, publicado no Diário da República, II série nº 106, de 8/5/92, pág. 4098 (4).
O NIPC (Número de Identificação de Pessoa Colectiva) da Amnistia Internacional é o 501 223 738.

Saiba como proceder clicando no link abaixo.


Amnistia Internacional (Secção Portuguesa)
(documento em .pdf)

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Tudo isto seria caricato se não fosse a violência

Eu pergunto, como Jihad Momani, chefe de redacção do jornal jordano شيحان (Xihan):
          - «O que é que prejudica mais o Islão, estas caricaturas ou as imagens de um tomador de reféns que ameaça degolar a vítima à frente das câmaras ou ainda um suicida que se explode no meio de um casamento em Amã?»

Estas tão faladas caricaturas, na minha opinião, não reproduzem outra coisa senão a atitude do islamismo radical e intolerante, agindo em nome de Maomé. Elas são o reflexo dos seus actos.
É importante que o mundo árabe entenda do que se fala, daí o acto de coragem de Momani ao publicar algumas das imagens divulgadas pelo jornal dinamarquês. As notícias ocidentais, nomeadamente as que são veiculadas através dos canais de televisão, também atingem o mundo árabe, mas a nossa liberdade de imprensa tanto é capaz de produzir uma informação isenta e responsável, irónica e caricatural quando assim o entender, como de transmitir as piores expressões de xenofobia, generalizando os árabes como islamitas e potenciais bombistas, sem querer saber de tantos homens e mulheres, muçulmanos ou não, religiosos ou laicos, que todos os dias arriscam a sua tranquilidade e a sua vida, só por pensarem de maneira diferente, como o fez Jihad Momani, logo demitido das suas funções.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Mais vale prevenir do que remediar

GRIPEPT.NET é a versão portuguesa de um projecto de vigilância epidemiológica concebido pelo holandês Carl Koppeschaar, que pretende monitorizar, em tempo real, a propagação da gripe em Portugal.
A participação de cada um é importante, pelo contributo que pode prestar à prevenção da doença.

À hora a que escrevo, Portugal conta com 4140 participantes; poucos ainda, se compararmos este número com os 21 425 holandeses ou os 11 989 belgas, de países participantes no projecto com uma população próxima da nossa.

Esta experiência capacitar-nos-á para melhor enfrentarmos uma eventual pandemia nos anos que se seguem.

Agora é consigo!
Clique no logótipo, no topo, faça o seu login e "perca" um minuto da sua vida a preencher o questionário semanal.
A saúde dos portugueses agradece.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

A mais louca de todas as árvores

Assim se intitulava o post de ontem em Dias com Árvores, anunciando o florescer das amendoeiras no Sotavento algarvio (se quiser saber porquê, siga o link).

Enchi-me de brio e parti à procura delas, no Barlavento.
Encaminhei-me no sentido de Messines e virei à esquerda na Cumeada, percorrendo esse belo caminho que nos conduz às Cortes, de regresso à EN 124.
Há uns 20 ou mais anos atrás, com o meu pai, percorri esse caminho, carregando uma câmara de vídeo (das pesadas, à época) e, com filmagens de amendoeiras, de platibandas de casas e de rendas de birlo, ostentando flores de amendoeira estilizadas, de chaminés rendilhadas, de jardins, de muros de pedra, realizei um clip sobre a Lenda das Amendoeiras.
Emprestei-o e nunca mais o vi.

Abelha sobre flor de amendoeira, Cortes, Silves, Janeiro 2006, © António Baeta Oliveira

Hoje, esse tal clip não teria acontecido. Além desta amendoeira, de que fotografei a flor, com a respectiva abelha, guardei umas poucas mais, raras, em curvas de caminho, sobre muros caiados de branco, ou debruçadas sobre vales, outrora cobertos com a sua brancura. Envelhecidas, abandonadas, ainda com pequenas amêndoas ressequidas nos seus ramos.

Confesso a minha tristeza, apesar da beleza do caminho, ao avistá-las, assim, como que se extinguindo, levando consigo a memória de um outro Algarve que já não volta mais.

Desculpem esta minha insistência de cada vez que me refiro às amendoeiras:
          - Se ao menos as plantassem na encosta norte da alcáçova!