quinta-feira, março 27, 2014

Nós não vemos com os olhos















O título é propositadamente um desafio, mas de facto nós não vemos com os olhos, mas sim através dos olhos.

Na escuridão completa nada se vê, por que o que vemos, vemos através da luz refletida nos objetos e é essa luz que o nosso cérebro interpreta.

O orgão que de facto vê, ou nos dá a ver, é o nosso cérebro, ao interpretar a luz que lhe chega através do nosso olhar.

É claro que a interpretação cerebral é tanto melhor quanto melhor informação for filtrada pelos olhos. Com bons olhos vê-se melhor do que com olhos com deficiência.

Com um cérebro habituado ao exercício de pensar, o que depende sobremaneira da quantidade e da qualidade da informação recebida, tanto mais profunda e complexa é a interpretação que se faz da imagem ou imagens que afluem ao cérebro.

Uma cadeira é uma cadeira, mas perante duas cadeiras diferentes já duas pessoas podem ter ideias diferentes sobre essas cadeiras, gostando mais de uma do que da outra, por razões que nada terão a ver com as cadeiras em si, mas sim com a maneira como apreciamos o belo.



Quando se trata de objetos de arte, já a informação que se tem sobre a história da arte ou os conceitos estéticos que preenchem a nossa informação serão tanto mais importantes quanto a quantidade ou qualidade da informação que se tem a tal respeito.

Quem pouco frequenta galerias de arte ou exposições terá certamente um gosto e uma capacidade de interpretação inferior aos que são frequentadores assíduos e informados.





















A arte muda com o tempo e quem não acompanhou esse percurso histórico irá ter dificuldade em entender a arte contemporânea, pois ela já não se preocupa com a representação dos objetos, mas mais com  as impressões sensoriais transmitidas pelas formas, pelas cores, pela composição... e outros conceitos ao longo do tempo irão sempre mudando o nosso olhar sobre as coisas.



quinta-feira, março 20, 2014

Quase se pode dizer: "Esta cidade vegeta".




Ruína de Fábrica de Cortiça em Silves.
A Natureza toma conta do abandono

Esta ruína foi um dia, em finais do séc. XIX, a maior unidade industrial do país.


Não com esta dimensão, houve muitas outras fábricas, de dimensão considerável, nesta localidade - Silves.



A macrocefalia da capital acabou por chamar a si todas estas fábricas a instalar-se na margem sul do Tejo. A Salazar também não deveria agradar esta elevada concentração operária, com experiência de luta acumulada sob a ideologia do anarco-sindicalismo e distante dos grandes meios de repressão.



Para os proprietários destas fábricas, os custos de exportação, com transporte até à capital, não lhes traziam vantagem. Havia também uma crise internacional na sequência de duas guerras mundiais.



Uma após outra, as fábricas começaram a incendiar-se, os proprietários obtinham o valor do seguro e partiam a instalar a sua fábrica na região da macrocéfala Lisboa, levando consigo todos os especialistas, da área da produção como da área administrativa, num sangradouro que levou as fábricas, os operários, o capital e o trabalho.


Os grandes e belos edifícios que ainda hoje permanecem no âmago da baixa silvense, bem como praticamente toda a rua Cândido dos Reis, erguida na altura da implantação industrial, com fábricas e residências de proprietários e quadros administrativos, e os bairros operários das cercanias, são fruto dessa época de esplendor.

Hoje já não há indústria corticeira.

Assistimos à degradação das fábricas abandonadas, receamos o futuro da maioria dos edifícios de maior porte e passeamo-nos tristemente numa cidade sem vida e sem perspetiva de futuro, que se vai entretanto mantendo com base na vida administrativa das escolas, do tribunal, das finanças, da autarquia, dos serviços e de restaurantes que servem parte desta gente que nem sequer vive na cidade.

Há por aí um turismozinho de meia tigela, que vem de autocarro e até de barco, que sobe ao Castelo e à Sé e se vai embora.

Ficam umas migalhas de gente no hotel ou caravanistas, nestes últimos tempos, enquanto a cidade dorme, embalada na nostalgia do seu passado ou no mito do desassoreamento do rio, que quando muito traria mais uns quantos turistas além dos dos autocarros e dos que já vêm de barco.

É a cidade que precisa de mudar por dentro.

Falta-lhe uma estratégia, como a que, no passado, levou à implantação da indústria corticeira. 

No Algarve, com uma Universidade na região, estou em crer que se poderia dar por bem empregue o investimento num estudo estratégico.

Esta é a minha proposta e é gritada com urgência. Há por aí mais alguma?



segunda-feira, março 17, 2014

A boia






A boia, boia.

Presa a uma corrente metálica, oscila conforme a corrente do rio.

O local onde a boia está presa é mais fixo do que a própria boia, apesar da intenção de se manter a boia presa.

A boia assinala a presença de algo que se quer saber onde se encontra, mas a boia não se encontra no local preciso que se pretende identificar através da posição da boia.

Já tinham pensado nisto? Eu ainda não e provavelmente nunca chegaria a pensar sobre tal coisa se não tivesse resolvido escrever sobre a boia que resolvi fotografar.

Mas o facto é que isto acontece com muitas e variadas coisas. 

Pensemos, por exemplo, no governo, que nos deveria governar e nos desgoverna, subtraindo rendimento ao nosso rendimento, em nome do nosso governo, para com tal subtração, supostamente, nos governar melhor, mas não governa.

Ora o governo não governa, mas a boia boia. Certo?!

Viva a boia! Abaixo o governo!


quinta-feira, março 13, 2014

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (XIV)




Imagem de Ibn Qasi em:
http://www.nova-acropole.pt/a_ibn_qasi_rei_iniciado.html


Após o assassínio de Ibn Qasi, em 1151, a cidade de Silves passou a ser governada por Ibn Al-Mundhir, um cavaleiro murida que já conhecemos de episódio anterior.

Este governo teve, no entanto, uma curta duração, pois Al-Mundhir entrou em conflito com Ibn Wazir e acabou por ser derrotado.

Ibn Wazir tornou-se senhor de Silves.

Em 1156, o governador de Sevilha pede ao emir dos almoadas, 'Abd al-Mu'min, que lhe envie um dos seus filhos, de forma a assegurar o governo da cidade. O emir envia o seu filho Abu Iaqub.

Este, faz a sua primeira campanha sobre Tavira e nesse mesmo ano de 1156 ocupa a região sob o domínio de Ibn Wazir, tomando Évora e Beja.

Ibn Wazir fica assim reduzido à posse do território de Silves.

Em 1157 Ibn Wazir é expulso de Silves pelo exército de Abu Iaqub, e assim todo o território de Silves e do Gharb fica definitivamente sob o poder almoada.

O sonho de Ibn Qasi e dos seus cavaleiros muridas acabou às mãos dos almoadas, a quem Ibn Qasi tinha pedido que viessem ajudá-lo, contra o poder dos almorávidas.

Curiosamente, um século antes destes episódios, já tinha sido Al-Mu'tamid quem se dirigiu ao emir dos almorávidas, a pedir apoio na luta contra os cristãos, e acabou subjugado ao poder dos que o vieram ajudar.


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Garcia DominguesHistória Luso-Árabe, edição do Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves, 2010

António Borges CoelhoPortugal na Espanha Árabe, vol. 2 - Editorial Caminho


Ibn Qasi, o rei iniciado do Algarve e seus Discípulos Muridinos, in A Nova Acrópole

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Se estiver interessado na leitura dos episódios anteriores, siga os links abaixo:



Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (I)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (II)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (III)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (IV)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (V)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (VI)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (VII)




Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (XII)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (XIII)




segunda-feira, março 10, 2014

Atirados para a margem






O rio é uma corrente que, implacavelmente, arrasta ou contorna os obstáculos até atingir o mar ou, simplesmente, atira para as margens o que se afasta do seu curso principal.

O rio é um pouco como a vida; a nossa vida.

Dia após dia somos arrastados pelos condicionalismos e pelas nossa opções para os enfrentar, e se não seguirmos a corrente ver-nos-emos atirados para a margem.

Como um rio, a corrente é forte e condiciona logo à partida de acordo com a origem social, condicionando o rendimento nos estudos, mais tarde o tipo de emprego e o valor da remuneração, vem depois a idade, eventualmente o desemprego e somos, muitos de nós, inelutavelmente atirados para a margem.

Em tempo de crise a vida corre como um rio em hora de tempestade e tudo se acelera, arrastado pela corrente.

As margens enchem-se de detritos, dos que não encontram um emprego, dos que o perderam, dos que adoeceram, dos que envelheceram, dos que perderam a casa, os haveres, dos que foram atirados para margem.

E o rio continua inexoravelmente indiferente.

quinta-feira, março 06, 2014

Abandonado






Sempre achei que gostaria de ter um barco.

Passo todos os dias junto ao rio e seria agradável, sempre que a maré o permitisse, passear rio abaixo, rio acima...

Duvido, no entanto, que fosse capaz de o manter conservado com os cuidados indispensáveis de pintura e outros arranjos que admito que existam, mas que não sei bem quais serão. 

Nunca me ocupei em trabalhos que exigissem habilidade manual, pois sou um desastrado quando necessito de usar as mãos para fazer o que quer que seja, para além das necessidades mais usuais do dia-a-dia.

Mas ter um barco exige atenção e trabalho de manutenção.

Muito provavelmente, se tivesse possuído um barco já lhe teria acontecido o mesmo que sucedeu a este e me parece que vai acontecer com mais alguns que por aqui vejo encostados ao cais.

Muito me engano ou o meu barco seria um barco abandonado como o da foto e não suportaria vê-lo ali, a "morrer" no próprio meio onde, seguramente, o seu dono se divertiu com ele e foi feliz.

Falo de um barco...


segunda-feira, março 03, 2014

A marca de água e a marca da água







A chuva marca a sua presença na janela do quarto.

Observar a chuva na janela, deitado na cama, não produz na mente, ainda meio adormecida, a mesma vaga de sensações e considerações que produziria se estivesse a pé, apesar de ainda meio adormecido.

A cama, assim como a água, são meios envolventes, onde habitualmente relaxamos o corpo e com ele a mente, no sono ou no banho.

O vaso de flores, espetral, desfocado pelo enfoque das gotas da chuva, recria uma marca de água, esse ténue sinal que subsiste num plano mais remoto, afastado do tema principal, mas cuja presença, se bem que secundária, desperta uma atenção que diria, talvez, mais exigente, a solicitar uma interpretação que não se evoca num primeiro olhar.

Apesar disso são as gotas de água que deixam a marca principal; a marca da água.

Ou não estivesse na cama a observar a chuva na janela e não o vaso das flores, que é tema sempre presente, com ou sem chuva.