sexta-feira, julho 23, 2004

O repouso do blog

Vou de férias!
Vou em busca de mais memórias da civilização do Al-Ândalus, que a Lua, em cima, pretende simbolizar. Vou até Marrocos, num curso de verão que me é proporcionado pela Fundação Al-Idrisi, conhecer, mais de perto, os testemunhos ainda vivos desses antepassados que habitaram antes esta terra a que hoje chamo minha e cuja herança convive comigo, todos os dias, na arquitectura, na poesia e até na tonalidade da minha pele.
Regressarei lá para meados de Agosto.
Deixo-vos com esta evocação de Silves, que o Helder Raimundo generosa e simpaticamente me ofereceu.

  • SILVES

    Olho o que resta do rio,
    ao fundo do vale,
    correndo entre os canaviais que o escondem,
    como se fosse um encantamento de sede.
    E recordo
    as belas palavras do poeta árabe Ibn ' Ammar,
    fazendo deslizar, suavemente, os seus poemas
    entre o castelo, a praça e o rio Arade.
    Breve instante,
    a miríade gasosa de acidez da laranja baía,
    convoca-me os dedos e os lábios para o seu amargo sabor doce,
    entre as argilas barrentas do rio, as enguias caracoleantes e os rouxinóis.
    Que saudades, de subir as íngremes histórias da cidade,
    sentindo a frescura dos laranjais e as vozes dos poetas de Silves.

              Fevereiro de 2004
              Um abraço do Helder F. Raimundo


P.S. Se, por acaso, tiver acessso à Internet, poderei, assim, graças ao Helder, matar saudades da minha terra.
Obrigado, Helder!


quinta-feira, julho 22, 2004

Ainda os símbolos e a preocupação com a imagem

+

Na sequência do que aqui escrevi sobre a "nova imagem de Silves", propôs-se também escrever Helder Raimundo, no seu Contrasenso, a propósito da recente mudança do símbolo de Loulé, desta moda dos novos símbolos e do que a mudança dos símbolos quer significar.
Aconselho vivamente a leitura do seu post, a que é possível aceder clicando na palavra sublinhada - Contrasenso - apesar desta transcrição de um excerto que considero significativo:

    (...) A preocupação é a imagem, o vestuário, o embrulho, no fundo, o símbolo. Mas nunca o símbolo precedeu o facto social. Sempre foi o contrário. Por isso apostar numa simbologia, sem factos, é como chover no molhado. Melhor seria, lembrando Ralf Dahrendorf, construir o território social em actos antes de falar em símbolos abstractos.



quarta-feira, julho 21, 2004

Esta alegria que vem não sei de onde, nem porquê

Três posts sucessivos com Casimiro de Brito!?
Estes três posts também representam três dias sucessivos do seu diário e o que eles me dizem, e que convosco pretendo partilhar, tornou-se mais urgente do que as outras coisas que eu, porventura, poderia querer dizer. A 21 de Julho de 2000, Casimiro escrevia:

    Não direi que esqueci os rostos de que não me lembro. Que não permanecem algures no meu ouvido os poemas que esqueci. Que deixei de amar quem amei. Não direi que perdi as veredas por onde caminhei na infância, lembro-me de alguma coisa, não sei de quê, um fio de água que se perdeu na terra do ser quando a terra do ser foi fresca. Há esconderijos que desconheço, raízes, cisternas cobertas de relva, há, é preciso que haja alguma coisa escondida para que se possa explicar esta alegria que vem não sei de onde, nem porquê.



terça-feira, julho 20, 2004

Uma luz que dói

Retorno a Casimiro de Brito. Hoje, na página do seu diário com data de 20 de Julho:

    Ensino à menina: os castelos que fazemos na areia desmoronam-se em poucas horas. Não chores. As casas onde moramos duram um pouco mais. E nós, pai? Umas vezes um pouco mais, outras vezes um pouco menos.

    Escrever é como se fosse na areia. As palavras têm a intensidade de uma concha na palma da mão - uma concha que tivesse também um coração. Vem depois uma onda, um rebanho de ondas que levam a concha para longe. O mistério do coração.

    A poesia de Sophia. Tanta serenidade. Parece que há só luz. A luz de uma escrita que "transcreve" o essencial da vida, ao lado e longe e dentro e ainda longe do sujo, embora o aceite, embora o resuma. Uma luz que dói. Uma dor que ela parece aceitar como se fosse apenas o mundo a mudar, o corpo. Assim é.

      • Sophia de Mello Breyner Andresen
        (Porto, 1919)

        Meditação do Duque de Gândia sobre a morte de Isabel de Portugal

        Nunca mais
        A tua face será pura limpa e viva
        Nem o teu andar como onda fugitiva
        Se poderá nos passos do tempo tecer.
        E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

        Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
        A luz da tarde mostra-me os destroços
        Do teu ser. Em breve a podridão
        Beberá os teus olhos e os teus ossos
        Tomando a tua mão na sua mão.

        Nunca mais servirei quem não possa viver
        Sempre,
        Porque eu amei como se fossem eternos
        A glória, a luz e o brilho do teu ser,
        Amei-te em verdade e transparência
        E nem sequer me resta a tua ausência,
        És um rosto de nojo e negação
        E eu fecho os olhos para não te ver.

        Nunca mais servirei senhor que possa morrer.



segunda-feira, julho 19, 2004

Os olhos com que nós vemos

Faz tempo que não partilho convosco algumas das reflexões que Casimiro de Brito publicou, em forma de diário do ano 2000, n'A Barca do Coração, Campo das Letras, Porto 2001.
Com data de 19 de Julho, faz hoje quatro anos, escrevia:

    Esta manhã vi sardinheiras na janela do vizinho. Ou eram buganvílias? E vi uma ninhada de gatinhos no terreno vago diante da casa. O facto de ter visto o que vi - vi também que são verdes e tristes os olhos da jovem que sobe a rua, quando a desço - quererá dizer que estou a reaprender a olhar? Ou que nunca olhei? Ou que só vi o que desejava ver? Vou olhar melhor. E lembrei-me, não sei porquê, que posso guardar um livro, jamais um corpo, por mais amado que seja. E que não amo só quando amo - e quem diz amar diz lembrar ou esquecer ou sentir repulsa, medo, angústia. Vou pensar melhor.


P.S. Acabei de chegar do concerto dos Terracota e Da Weasel, em Lagoa.



sexta-feira, julho 16, 2004

Nova imagem de Silves, porquê?

Novo logotipo de Silves

Silves tem uma nova imagem gráfica.
Foi apresentada com pompa e circunstância, mas ainda ninguém explicou porquê e para quê.

Anterior logotipo de Silves
A imagem gráfica anterior, relativamente recente e cuja simbologia tem sido criativamente interpretada na forma como se apresenta em outdoors de diversas dimensões e com diversos fins, na maneira como decora a frota de viaturas e máquinas, no processo que utiliza para nos representar nas placas toponímicas e de boas-vindas das sedes de freguesia e de outras localidades, ao emoldurar livros, publicações, cartazes, documentação oficial e oficiosa, e que no fundo vem sendo a imagem gráfica de Silves e do seu concelho, vai ser toda substituída?
Admito que a nova imagem está mais leve do que a anterior - o tempo "pesa" - mas a nova imagem é menos rica na sua iconografia (cuja utilização tem sido a mais-valia da imagem anterior), e mais representativa da cidade de Silves, menos das suas várias freguesias e da diversidade geográfica do concelho (apesar de alguns símbolos que descortinei num mapa do concelho, mas nos quais, sinceramente, não vislumbro nenhuma representatividade).
Afinal mantêm-se a cor laranja e a tonalidade grés da nossa rocha (embora se perca o verde do arvoredo da serra e do barrocal e o azul do mar) e os símbolos dominantes permanecerão a lua e o castelo. Justificar-se-á tamanha despesa numa imagem que nada altera de fundamental, antes perdendo no particular?
Tudo isto não passa senão por ser a minha argumentação, mas o que dirão os outros?
O que dirá a Assembleia Municipal? Estará esta Assembleia disposta a deixar alterar, sem necessidade especial que o justifique, a imagem com que o seu concelho se apresenta ao exterior? Achará a Assembleia que o dinheiro que vai ser gasto na apresentação, na substituição e na afirmação do novo símbolo, em tempo de crise e de endividamento, valerá a pena? Pergunto ainda:

    - Quererá esta Assembleia agendar e discutir este assunto, ou prefere não reagir perante factos consumados?


quinta-feira, julho 15, 2004

De um lugar que sei

Fiquei encantado com a leveza com que o poema flui e, depois, o tema e o tom, de sabor andalusino.
Não resisti a pedir autorização ao autor para o publicar aqui e incluo ainda esta sua marca pessoal, que tem a ver com o processo de construção do poema - o rascunho.

Obrigado a, © as musas esqueléticas.

  • DE UM LUGAR QUE SEI

    Queria mostrar-te os árabes
    há mil anos ali. Fingem que estão
    mortos para todo o sempre,
    quando a água como o tempo
    nos lembra que somente dormem
    entre sombras e aragens de verão,
    uma imagem de oásis,
    uma ideia romântica
    com que fugimos às dores do mundo
    em parto com certeza demorado.
    Mesmo assim dormiriam, aceitemo-lo,
    e a lenga-lenga, a música
    da voz dos seus poetas e alaúdes
    seria o que quisesses, se estariam
    ali para atrair os teus ouvidos
    com música cristã, gazela esguia.

    © as musas esqueléticas

      Rascunho 13.7.04

        Queria mostrar-te os árabes
        há mil anos ali. Fingem que estão
        mortos para todo o sempre,
        quando a água como o tempo
        nos lembra que somente dormem
        entre as sombras e aragem aragens de verão,
        uma imagem de oásis,
        uma ideia romântica
        com que fugimos ao mundo em convulsões às dores do mundo
        num em parto com certeza demorado.
        Mesmo assim dormiriam, aceitemo-lo,
        e a lenga-lenga, a música, a monorrima
        da voz dos seus poetas e alaúdes
        seria o que quisesses, se estariam
        ali para atrair, gazela esguia,
        com música cristã, os teus ouvidos.
        ali para atrair os teus ouvidos
        com música cristã, gazela esguia.


P.S. - Não termino sem antes vos dar a conhecer O Monstro das Bolachas, na forma como o Jaquinzinhos nos faz sentir o peso da burocracia.

P.S.2 - Cheguei agora do concerto dos XUTOS, em Silves.


quarta-feira, julho 14, 2004

Já lá vai um ano!

Bunker, © Margarida Soares do Carmo Ramos

Faz hoje precisamente um ano que a propósito do edifício que, na fotografia acima, atravanca completamente esta antiga rua, me regozijava com o seu derrube, em post que se intitulava O fim do "bunker" e a que se pode aceder clicando aqui.
A dado ponto afirmava o seguinte:

  • Rua Bernardo Marques, Julho 2004, © António Baeta Oliveira(...) Vi, já faz algum tempo, uma planta que permitia reconhecer a melhoria que seria introduzida neste local, com a supressão do "bunker".
    O ajardinamento, as escadarias laterais, o que me pareceu ser a leveza dos candeeiros públicos de iluminação, mas, sobretudo, o espaço, a amplidão do olhar, o simples pormenor de ver a rua toda, desanuviada, e a substancial melhoria de uma zona da cidade, que teve aqui a sua rua principal, onde imperava o saudoso café "Havaneza", e que neste últimos anos se vinha degradando aceleradamente.
    Espero que a planta que em tempos observei não tenha sido alterada significativamente e se o foi, que tivesse sido para melhor. Faço votos de uma rápida intervenção! (...)


Bem!
Passado um ano, o ajardinamento está todo por fazer e os meus votos de rápida intervenção de nada serviram, pois logo dois meses mais tarde, a 30 de Setembro, em post que tem o título O Poço da Câmara e a que se pode aceder clicando aqui, já eu não entendia o porquê do início destas obras, num momento em que o Verão tinha começado e se mantinham paradas e inalteradas passados mais de dois meses, com evidentes prejuízos para o comércio desta e das ruas vizinhas.
De facto, a melhoria do local é indiscutível, mas isso é mérito dos arquitectos, agora o planeamento e funcionamento dos serviços, da responsabilidade da Câmara, deixam imenso a desejar.
Uma palavrinha mais para os cabos que, caoticamente, cruzam os céus desta minha cidade comprometendo o equilíbrio da paisagem urbana e outra palavrinha ainda para uma promessa eleitoral, desde o primeiro mandato, que tinha a ver com a intervenção sobre os edifícios degradados, e há um neste local, que eu propositadamente não incluo nesta fotografia, mas que figura, tal como então, na fotografia que abre este post.


terça-feira, julho 13, 2004

Gama e Ibn Madjid

Apeteceu-me rever um programa de computador, mais exactamente um jogo didáctico sobre Vasco da Gama e a Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, que eu tinha programado, com o apoio do meu amigo Manuel Ramos, para a Federação Portuguesa de Filatelia, por ocasião de uma grande mostra internacional no Centro Cultural de Belém, conhecida por Portugal 98. A relação com a filatelia tinha a ver com a utilização de selos e outro material filatélico para contar a história que suportava o jogo.



Dizia então que revia esse programa de computador, quando se me deparou este texto, que havia sido escolhido para descrever o encontro de Vasco da Gama com Ibn Madjid (o conhecedor e experimentado piloto árabe que o rei de Melinde facultara a Vasco da Gama para a travessia do Índico), e que reproduzo a seguir:


  • " Quando o capitão português e o piloto árabe, naquele dia, se comunicam os seus conhecimentos, o mundo geográfico e o espírito humano alargam-se de súbito. Alargam-se para sempre. Em frente das cartas de marear de cada um, Ibn Madjid e o Gama entreolham-se e medem, inebriados pela alegria inefável que dá o conhecimento, as novas dimensões da Terra e do Homem. (...) Até então havia apenas homens, povos, religiões diferentes. Mas naquele dia nasce a Humanidade, que hoje está no quinto século da sua breve infância. Daqui por diante a verdadeira história dos povos desenvolve-se como um corolário desse encontro. "
    Jaime Cortesão, História dos Descobrimentos Portugueses, Vol. II, Parte IV, Cap. IX, 2ª edição / Círculo dos Leitores


Entristece-me recordar como há seis anos atrás achava que a Humanidade, nesta perspectiva de Jaime Cortesão, estaria a atingir a adolescência. É que hoje, passados seis anos, acho que estamos num processo de regressão.
Quem me dera que estivesse enganado!


segunda-feira, julho 12, 2004

Pablo Neruda

Deixem-me ser o carteiro, de Pablo Neruda, e trazer-vos um recado que diz que Pablo nasceu, faz hoje cem anos, naquela longa fatia de terra sobre o Pacífico, que ele tornou mais próxima desta curta fatia de terra sobre o Atlântico, apesar do mar, ou precisamente por causa do mar, da poesia e dos homens.


P.S. Aproveito o ensejo para agradecer a todos os que se manifestaram por ocasião do 1º aniversário do Local & Blogal, nomeadamente os que o fizeram nos seus próprios blogs, como Contrasenso e Um pouco mais de Sul com os comentários adjacentes..


sexta-feira, julho 09, 2004

Melancolia(s)

Este será o primeiro poema luso-árabe do mês de Julho e também o primeiro deste novo ano de publicação que agora se inicia.
É feito de melancolia, dessas de final do dia, da beleza do momento, das que amadurecem nos dias já vividos, com os olhos postos em novas madrugadas.

  • De Ibn Sara, de Santarém

    olhai, o rio em seu manto!
    que noiva o tingiu do açafrão da tarde?

    a brisa soprou
    e ao fazê-lo
    sacudiu a sua superfície
    numa armadura de guerreiro
    pronto para a luta.

Adalberto Alves
O meu coração é árabe
Assírio & Alvim, Lisboa 1998



quinta-feira, julho 08, 2004

Um (1) ano!

Também chegou a vez do Local & Blogal cumprir um ano. Dei um salto aos arquivos e fui visitar o mês de Julho de 2003 e as minhas primeiras ablogadelas.
Lá estão os poemas luso-árabes (que tendem a esgotar-se, mas que entretanto vêm merecendo a companhia de outros poetas), os comentários à vida local, as referências à comunidade blogal, a atenção à actividade cultural da região, o reflexo dos estados de espírito, a perspectiva crítica sobre o nosso mundo...

Aqui deixo um abraço a todos os que me vêm acompanhando e comentando, no fundo os que justificam que ainda por cá continue.

Obrigado!


quarta-feira, julho 07, 2004

Lhasa de Sela

http://mapage.noos.fr/weblhasa/v2/portrait/fr_portrait.html

 

 

 

 

Permitam-me que me lastime junto de vocês pelo acidente na minha perna esquerda, que me impede de estar hoje no Fórum Lisboa para ouvir Lhasa.


Ouçam-na aqui, em pequenos excertos.

 



A fraternidade no Al-Ândalus

Ibn 'Arabi, de Múrcia, famoso filósofo e místico sufi que, curiosamente, se referiu na sua obra a Ibn Qasi, de Silves, comentando um seu tratado de filosofia - "O Descalçar das Sandálias" - proclamava, em plena época almoada (séc. XII-XIII):


  • "O meu coração abriu-se a todas as formas: é uma pastagem para gazelas, um claustro para monges cristãos, um templo de ídolos, a Caaba do peregrino, as tábuas da Tora e o Alcorão. Pratico a religião do Amor; qualquer que seja a direcção em que as caravanas avancem, a religião do Amor será sempre o meu credo e a minha fé."


P. S. Tradução de Adalberto Alves


terça-feira, julho 06, 2004

O espírito universalista do séc. X

O marcador que uso na minha agenda foi-me oferecido por um amigo no regresso de uma sua viagem a Granada. Dobra-se ao meio e prende-se à folha que se pretende marcar através de dois magnetes. Ostenta uma decoração que simula um azulejo mudéjar. De cada vez que o abro, deparo-me com uma bela frase de Az-Zubaidi, poeta do séc. X no Al-Ândalus, que vou transcrever em castelhano, tal como figura neste meu marcador:


  • Todas las tierras en su diversidad son una, y los hombres todos son vecinos y hermanos.


segunda-feira, julho 05, 2004

Sophia, ainda uma outra vez

Promontório e Ermida da Senhora da Rocha, © Escola Secundária Padre António Martins de Oliveira
Promontório e Ermida da Senhora da Rocha, Lagoa, Algarve
  • Senhora da Rocha

    Tu não estás como Vitória à proa
    Nem abres no extremo do promontório as tuas asas
    Nem caminhas descalça nos teus pátios quadrados e caiados
    Nem desdobras o teu manto na escultura do vento
    Nem ofereces o teu ombro à seta da luz pura

    Mas no extremo do promontório
    Em tua pequena capela rouca de silêncio
    Imóvel muda inclinas sobre a prece
    O teu rosto feito de madeira e pintado como um barco

    O reino dos antigos deuses não resgatou a morte
    E buscamos um deus que vença connosco a nossa morte
    É por isso que tu estás em prece até ao fim do mundo
    Pois sabes que nós caminhamos nos cadafalsos do tempo

    Tu sabes que para nós existe sempre
    O instante em que se quebra a aliança do homem com as coisas
    Os deuses de mármore afundam-se no mar
    Homens e barcos pressentem o naufrágio

    E por isso não caminhas cá fora com o vento
    No grande espaço liso da luz branca
    Nem habitas no centro da exaltação marinha
    O antigo círculo dos deuses deslumbrados

    Mas rodeada pela cal dos pátios e dos muros
    Assaltada pelo clamor do mar e a vemência do vento
    Inclinas o teu rosto

    Imóvel muda atenta como antena


Sophia de Mello Breyner Andresen
Mar
Editorial Caminho, Lisboa 2001


sábado, julho 03, 2004

Não é assim que quero "Viver Silves"

Publicidade de empresa privada no Castelo de Silves, Julho 2004 © Manuel Ramos
Publicidade no Castelo de Silves

Silves assistiu ontem à aplicação de faixas publicitárias nos muros da alcáçova do seu Castelo, património nacional, seguramente mais belo na sua vetusta pedra vermelha - o grés de Silves - do que enfeitado com quaisquer acrescentos, que não representarão outra coisa que não seja um atentado à nossa memória colectiva.
Indignado dirigi um veemente protesto, por mensagem telefónica, à Senhora Presidente da Câmara e divulguei-o, com pedido de reenvio, junto dos muitos amigos que constam da minha lista.

Fui surpreendido por um telefonema pessoal da Sra. Presidente, no qual me agradecia por lhe ter chamado a atenção para o facto e informando-me de que aquele aparato não era do seu conhecimento. Teria até já dado ordens para que todo o material então colocado na muralha do Castelo fosse imediatamente retirado.

Fica assim esclarecido este episódio de mau gosto.


sexta-feira, julho 02, 2004

Sophia

  • Atlântico

    Mar
    Metade da minha alma é feita de maresia


Sophia de Mello Breyner Andresen
MAR
Editorial Caminho, Lisboa 2001


P. S. Há mais Sophia ao fundo desta página e muito mais ainda aqui.


A nostalgia

Neste meu primeiro post de Julho, o mês em que, faz agora um ano, os blogs se encarregaram de nos aproximar, o prometido poema de José Carlos Barros:

  • A nostalgia

    Um tempo houve em que estendíamos os frutos
    Na esteira das açoteias como se fosse ainda
    Possível acrescentar à tarde uma outra luz que a
    Tarde exasperadamente procurava nas

    Suas frases do estio, enquanto as crianças
    Corriam nos lancis dos canais de rega,
    Mergulhavam no tanque ou se levantavam em
    Equilíbrio nas cumeadas distantes. Então as mulheres

    Erguiam-se das cadeiras de esparto e vinham
    Também elas ao pátio, deslumbradas, a olhar as
    Labaredas imensas e a esconder com o lenço
    Na cara as lágrimas duma nostalgia sem nome.

            Cacela, 24 de Junho de 2004

P.S. Queiram desculpar esta intromissão na poesia, mas neste momento de elevada gravidade política não posso deixar de chamar a atenção de quem me visita para este texto de Pacheco Pereira no Público de 1 de Julho.
(Clique aqui)