segunda-feira, maio 28, 2012

Um poema a cada segunda-feira (LXXX)



O Público divulgou, há alguns anos, uma série de antologias de poesia que encomendara a certas personalidades da vida portuguesa não diretamente relacionadas com a literatura.

É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.

A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga, Diogo Freitas do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues.
Irei terminar com Marcelo Rebelo de Sousa.


  • QUANDO A LUA VIER TOCAR-ME O ROSTO

Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
     e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta
     marca o fim de um eclipse horário de uma partida
     iminente e o tempo apaga a marca dos teus passos
     sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo por
     sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu
     partiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua
     e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um
     prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é o leito de tu teres partido
     uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus passos
     por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações de
     gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu leito é
     o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier
     tocar-me o rosto vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos, a
     tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que o mar
     se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço
     um pêndulo para interrogar a lua por teres partido e a
     marca dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder
     surgir de noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe o
     coração de alfinetes para que tu partiste seja a razão
     mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar
     um pássaro para lhe ler nas entranhas a direcção tu
     partiste e a marca dos teus passos consiste nos olhos
     abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de
     tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.



Ana Hatherly
Os poemas da minha vida
Marcelo Rebelo de Sousa
Público, Lisboa 2005

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segunda-feira, maio 21, 2012

Um poema a cada segunda-feira (LXXIX)



O Público divulgou, há alguns anos, uma série de antologias de poesia que encomendara a certas personalidades da vida portuguesa não diretamente relacionadas com a literatura.

É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.

A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga, Diogo Freitas do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues.
Irei terminar com Marcelo Rebelo de Sousa.


  • DO OUTRO LADO DE MIM

Não é a vida que se não viveu o que desgosta;
Não são as horas perdidas à espera de outras o que faz falta;
Nem os sonhos que a realidade não compensou
O que pesa na balança da existência.
Quando o mar é manso e igual
Nem se sente o alvoroço da chegada.
O porto está além mas nada significa além do desembarque.
A chegada é coisa vazia com sabor a frustrada despedida.
O que interessa na vida é a bagagem dela nos nossos sonhos de futuro.
Será o que para além a aventura queimará, alimentada
Por pedaços de nós que o vento arranca.


O que interessa não é a paz de ter chegado.
O que é grande e belo, é isto de chegar
E ter logo e sempre a coragem de partir.

Marcos Leal
Os poemas da minha vida
Marcelo Rebelo de Sousa
Público, Lisboa 2005

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segunda-feira, maio 14, 2012

Um poema a cada segunda-feira (LXXVIII)



O Público divulgou, há alguns anos, uma série de antologias de poesia que encomendara a certas personalidades da vida portuguesa não diretamente relacionadas com a literatura.

É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.

A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga, Diogo Freitas do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues.
Irei terminar com Marcelo Rebelo de Sousa.


  • A MEIO DO CAMINHO

Fico entre o céu e a terra.
Choro só para dentro.
Sou  como a árvore nua
que ao alto os ramos indica:
ergue as asas, mas não voa,
tem raízes, mas não desce.

Alberto de Lacerda
Os poemas da minha vida
Marcelo Rebelo de Sousa
Público, Lisboa 2005

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segunda-feira, maio 07, 2012

Um poema a cada segunda-feira (LXXVII)



O Público divulgou, há alguns anos, uma série de antologias de poesia que encomendara a certas personalidades da vida portuguesa não diretamente relacionadas com a literatura.

É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.

A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga, Diogo Freitas do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues.
Irei terminar com Marcelo Rebelo de Sousa.


  • A LEITORA

A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu primcípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.

António Ramos Rosa
Os poemas da minha vida
Marcelo Rebelo de Sousa
Público, Lisboa 2005

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