segunda-feira, março 26, 2012

Um poema a cada segunda-feira (LXXI)



O Público divulgou, há alguns anos, uma série de antologias de poesia que encomendara a certas personalidades da vida portuguesa não diretamente relacionadas com a literatura.

É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.

A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga, Diogo Freitas do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues.
Irei terminar com Marcelo Rebelo de Sousa.


  • ESTOU SÓ

Estou só
mas viajo no pensamento.

E à minha cabeceira
a voz que escuto
é Fernando Pessoa que responde.


José Craveirinha
Os poemas da minha vida
Marcelo Rebelo de Sousa
Público, Lisboa 2005

Siga-me no twitter
e/ou
Divulgue esta página com um

segunda-feira, março 19, 2012

Um poema a cada segunda-feira (LXX)



O Público divulgou, há alguns anos, uma série de antologias de poesia que encomendara a certas personalidades da vida portuguesa não diretamente relacionadas com a literatura.

É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.

A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga e Diogo Freitas do Amaral.
Prossigo, agora com Urbano Tavares Rodrigues.


  • NONA CARTA PARA UM DEUS AUSENTE

da terra vou sabendo o nome inteiro
dos ritos que antecedem a colheita.
podar os ventos, recolher as chuvas,
armazenar as maduras cerejas do granizo.
com as névoas recubro a mancha verde
das oliveiras do pátio.
os tordos retornaram.
catam o vento,
talvez do seu exílio falem,
pelo alfabeto dos longes se relêem.
entre o desejo e a sombra se confundem.
lavrador de silêncios
o coração hesita.
outra colheita o demanda;
pega a terra, nela lança
a úbere semente de mais naves.
pacientemente, sei, esperará que o tempo recolha em seu celeiro
o fruto mais maduro que lhe couber.

do trigo lembro o verde, o ouro depois.
a emoção compondo o linho sobre a mesa.
solidários, os gestos se repartem.
à cabeceira, tu.
ao centro o pão mais alvo, o vinho.
há palavras que sobre as coisas pairam,
as possuem.
o grande coração da casa aí flui.
Como omitir seus signos?

chove ainda, sei que os deuses
virão pelo crepúsculo retomar
as cordas de suas brancas liras d'água alada.
pelo pinhal caminham;
ouve como o vento calou os seus murmúrios.
atendo a seus segredos,
em seus vasos lunares procuro ainda
o grão de areia que diga dos teus passos.
enternecidamente o tomo.
sobre a palma avalio o seu peso,
pergunto que caminhos
apontam as luzes.
tão frágil a distância entre o que ouso
e a clareira de névoa do que sinto!
diz-me tão-só se com os deuses vens;
se a lira que aqui ouço é a resposta
que o coração, atento,
me requer.

precisava uma palavra que contasse
a estranha solidez da esperança.
ou um sentido apenas,
preservado em seu temor mais fundo,
em seu calado embuste.
não tenho, ao corpo cabe sempre
um elo mais que a ilusão prolonga.
por quem vem vou sabendo doutras naves
que ao pensamento aportam
e a territórios mais virgens se abalançam.
contar-te-ei, depois, se tempo houver,
em que floresta ou rio se acendem já
as fogueiras mais rubras das palavras.
preencho a solidão de tua adaga.
mais fundo sempre, o coração o pede.
a cicatriz se fende, o golpe busca.
se ouvires por ti gritar, sou eu que chamo,
diz aos deuses que morro ou que renasço.



Hugo Santos
Os poemas da minha vida
Urbano Tavares Rodrigues
Público, Lisboa 2005

Siga-me no twitter
e/ou
Divulgue esta página com um

segunda-feira, março 12, 2012

Um poema a cada segunda.feira (LXIX)



O Público divulgou, há alguns anos, uma série de antologias de poesia que encomendara a certas personalidades da vida portuguesa não diretamente relacionadas com a literatura.

É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.

A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga e Diogo Freitas do Amaral.
Prossigo, agora com Urbano Tavares Rodrigues.


  • SENHORA DAS TEMPESTADES

Senhora das tempestades e dos mistérios originais
quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
Trazes o terramoto a assombração as conjunções fatais
e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.

Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
há uma lua do avesso quando chegas
crepúsculos carregados de presságios e o lamento
dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.

Senhora do vento norte com teu manto se sal e espuma
nasce uma estrela cadente de chegares
e há um poema escrito em página nenhuma
quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.

Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse
trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.

Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.

Senhora do sol do sul com que me cegas
a terra toda treme nos meus músculos
consonância dissonância Senhora das vozes negras
coroada de todos os crepúsculos.

Senhora da vida que passa e do sentido trágico
do rio das vogais Senhora da litúrgica
sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
de que não fica senão a breve música.

Senhora do poema e da oculta forma da escrita
alquimia de sons Senhora do vento norte
que trazes a palavra nunca dita
Senhora da minha vida Senhora da minha morte.

Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos
que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo
Senhora que me dóis em todos os sentidos
como um ritmo só ritmo como um ritmo.

Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias
Senhora da circulação que mata e ressuscita
trazes o mar a chuva as procelárias
batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.

Batem os sons os signos os sinais
trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes
fica o sentido trágico do rio das vogais
o mágico passar das consoantes.

Senhora nua deitada sobre o branco
com tua rosa-dos-ventos e teu cruzeiro do sul
nascem faunos com tridentes no teu flanco
Senhora de branco deitada no azul.

Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio
Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância
teu rosto de sereia à proa de um navio
tudo em ti é partida tudo em ti é distância.

Senhora  da hora solitária do entardecer
ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
onde tu moras começa o acontecer
tudo em ti é suspresa Senhora do grande enigma.

Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
Setembro te levou para as metrópoles excessivas
batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.

Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso
tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia
galopas no meu sangue com teu cateter chamado Pégaso
e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.

Tudo em ti é magia e tensão extrema
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
batem as sílabas da noite no coração do poema
Senhoras das tempestades e dos líquidos caminhos.

Tudo em ti é milagre Senhora da energia
quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades
batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia
ao som do nome que só Deus sabe Senhora das tempestades.



Manuel Alegre
Os poemas da minha vida
Urbano Tavares Rodrigues
Público, Lisboa 2005

Siga-me no twitter
e/ou
Divulgue esta página com um

segunda-feira, março 05, 2012

Um poema a cada segunda-feira (LXVIII)



O Público divulgou, há alguns anos, uma série de antologias de poesia que encomendara a certas personalidades da vida portuguesa não diretamente relacionadas com a literatura.

É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.

A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga e Diogo Freitas do Amaral.
Prossigo, agora com Urbano Tavares Rodrigues.


  • FONTE
      I

Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo -
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.

      II

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara esta no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

                                                                                             (...)

(Este poema está dividido em quatro longas partes. Por motivos que se relacionam com a sua extensão e as condições especiais deste meio de divulgação, só aqui transcrevo as duas primeiras)



Herberto Helder
Os poemas da minha vida
Urbano Tavares Rodrigues
Público, Lisboa 2005

Siga-me no twitter
e/ou
Divulgue esta página com um