quinta-feira, junho 30, 2005

Mais um serviço google


earth.google.com

Desci em queda livre, a partir do espaço, sobre o telhado da minha própria casa, em Silves.
A imagem acima pode ainda ganhar maior ampliação no programa que o google disponibiliza gratuitamente e a que pode aceder clicando na imagem de Silves. Nem todo o planeta está ainda disponibilizado com a cobertura que mereceu esta minha terra (por sinal, até ao momento, é até a única cidade algarvia a merecer tal nível de ampliação).

Estou a divertir-me imenso visitando lugares que conheço e outros que gostaria de visitar. Tenho mesmo preparada uma viagem virtual aos meus lugares de referência.

Porque espera!?

P.S.
A propósito de José Carlos Fernandes e dos seus novos trabalhos, leiam aqui.

quarta-feira, junho 29, 2005

O perfume azul de um corpo adivinhado


  • É talvez uma urna uma lâmpada uma flor
    um vaso de veludo
    uma lança solar
    ou apenas um traço negro em torno
    de um ponto azul

    Algo que não sei
    uma felicidade tão leve tão frágil e tão nua
    o desejo de nomear
    uma pele fresca de lua uma mulher de chuva
    o perfume azul de um corpo adivinhado
    ou um oásis de silêncio a brancura de um lírio
    que nascesse do seio do espaço

    Branca dourada ou transparente
    flexível como a água ou uma folha oval
    apenas esboçada vacilando
    luz misteriosamente pura
    inacessível já voando para o alto

    António Ramos Rosa
    Antologia Poética
    Lâmpadas com alguns insectos (1992)
    Publicações Dom Quixote, Lisboa 2001


terça-feira, junho 28, 2005

O Quiosque da Utopia

www.devir.pt/publicacoes/Quiosque_Utopia.pdf
Quiosque da Utopia

A Pior Banda do Mundo é o título de uma série de publicações de Banda Desenhada (BD) da autoria de José Carlos Fernandes, um algarvio, natural de Loulé, cuja criatividade é amplamente reconhecida entre os cultores desta riquíssima forma de expressão, a BD, e cujo conhecimento pretendo alargar aos que por aqui vão passando.

Aconselho-vos então a clicar sobre a ilustração que encima este post, que vos dará acesso a um ficheiro em formato .pdf com duas páginas do capítulo que dá o nome ao seu primeiro álbum - O Quiosque da Utopia - e ao qual já se seguiram mais três: O Museu Nacional do Acessório e do Irrelevante, As Ruínas de Babel, e A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto de que se pode inteirar melhor em Devir (Banda Desenhada portuguesa).

Estou certo de que irá gostar deste olhar atento e irónico sobre o mundo e os homens.

segunda-feira, junho 27, 2005

A máscara que mais me custou usar

No Hospital de Portimão pelo Carnaval de 2003

Eu e mais alguns amigos de infortúnio teremos que comparecer hoje em tribunal para prestar declarações a propósito do incidente que me forçou ao uso desta máscara, marcada a fogo, pelo Carnaval de 2003.
Já lá vão mais de dois anos.

sexta-feira, junho 24, 2005

Um Cont(inh)o (III)

Em dia de São João, um microconto (cerca de 50 caracteres):


  • Enquanto a castidade lhe sustinha o gesto, a mente, essa, divagava.

quinta-feira, junho 23, 2005

Está aí o verão algarvio (III)

(Continuação)

Todos sabemos que os governantes nos podem enganar e que não nos enganam unicamente quando são apanhados na mentira.
Todos conhecemos Nixon e o caso Watergate, Bush e a intervenção militar no Iraque, cujos contornos se aprofundam ainda mais com recentes revelações no Times.
Entre nós, lembremos o último governo de Portugal e o abate de sobreiros em zona de reserva agrícola nacional, aprovada em Conselho de Ministros.

O que vou dizer não passa de mera especulação, é verdade, mas espero que venha a tempo de alertar os que aqui me lêem e através deles as associações ambientais para que se esclareça a situação, se eventualmente houver alguma coisa para esclarecer.

No último painel do Seminário que venho comentando foi apresentado o projecto Amendoeira Golf, a instalar no Morgado da Lameira.

O Morgado da Lameira, um dos mais férteis e ricos vales da nossa região, que a partir do 25 de Abril se tornou propriedade estatal por via da nacionalização da banca, passou à posse do grupo económico de Vasco Pereira Coutinho quando da sua privatização. Trata-se de um terreno de grande interesse agrícola e elevada sensibilidade ambiental, com a passagem de dois aquíferos, um deles o mais importante aquífero do Algarve - o Querença-Silves - do qual dependemos quase exclusivamente em tempo de seca, e a ainda o aquífero de Alcantarilha. É atravessado por duas ribeiras, a de Lagoa e a de Alcantarilha, e a sua riqueza e fertilidade provêm da circunstância de ser um leito de cheia, uma zona aluvial.
Em Março de 2003, por decisão do Conselho de Ministros, é aprovado para esta zona uma autorização de urbanização. Estranho, não?
Pois este terreno, assim liberto das limitações que a sua condição agrícola impunha, foi vendido a um grupo luso-irlandês, de capitais irlandeses e americanos, e prepara já planos de pormenor para a instalação de um campo de golfe, uma zona urbanizada e uma outra com vivendas de luxo, o Amendoeira Golf, num investimento de 150 milhões de contos para os próximos três anos.
Obviamente, o modelo teórico é inatacável. (Veja-se o post de ontem)

É muito, muito dinheiro e a gerar muito, muito mais!
Vendemo-nos ou não?!
Isto dá que pensar ou é só o meu espírito fundamentalista (foi assim que, durante este Seminário, ouvi algumas vezes apelidar os que manifestam opiniões contrárias, nomeadamente em defesa de questões ambientais e de património) a funcionar?

quarta-feira, junho 22, 2005

Está aí o verão algarvio (II)

(Continuação)

O segundo dia vou dividi-lo em dois períodos: o da manhã e o da tarde.

O da manhã foi um período técnico, de divulgação de estudos sobre o turismo em espaço rural e o turismo cultural, nas ópticas do complemento ao sol e praia e ainda da defesa do património.
Foi o melhor momento deste Seminário.
Houve importantes chamadas de atenção para o perigo do economicismo na divulgação cultural, o reduzido envolvimento da população, a degradação patrimonial perante a pressão do turismo de massas, a destruição da identidade local e perda de genuinidade, o erro de desenvolver as cidades para o turismo em vez de as desenvolver dando lugar ao turismo, ... bem como apelos à procura do diálogo e de soluções para os conflitos entre gestão cultural e gestão turística, que os há.

A parte da tarde também mereceu duas apresentações e estudos do foro técnico, relacionadas com o Projecto POLIS e a importância do sistema de informação geográfica.
Sobre este assunto dos estudos técnicos quero dizer que, por melhor imaginados e concebidos que estejam, são e serão sempre passíveis de crítica e de erro.
Ninguém poderá acreditar que não haveria outras possíveis abordagens.
Eu, pelo que me toca, achei inadequadamente paternalista a atitude da pessoa que dirigia a Mesa, José António Silva (em representação da Confederação do Comércio), ao proclamar que o modelo teórico que suporta estes estudos, e assim se referiu ao projecto Polis e ao trabalho sobre informação geográfica, não tem contestação possível, como que inibindo quem ali os quisesse questionar. Ao longo da sessão procedeu assim por mais duas ou três vezes.
Fiquei a pensar se haveria algum receio de contestação a propósito destas comunicações ou das comunicações que se seguiriam.

Essas minhas considerações ficam para o episódio seguinte. Amanhã.

terça-feira, junho 21, 2005

Está aí o verão algarvio

No passado fim-de-semana decorreu em Silves um Seminário sobre turismo e desenvolvimento local.
Numa sala abafadíssima (apesar de todos os esforços de última hora para conseguir ventoinhas e um aparelho portátil de ar condicionado), com cadeiras desconfortáveis e rangentes, com uma assistência pouco numerosa e que foi diminuindo até à vintena (um pouco mais ou menos), eu fui resistindo, escudado na minha vontade de entender o que se passa.

O primeiro dia foi da responsabilidade, quer queiramos ou não, das entidades responsáveis pelo estado a que isto chegou: Área Metropolitana do Algarve, antes AMAL (Associação dos Municípios do Algarve), CCDRAlg (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional), RTA (Região de Turismo do Algarve), AHETA (Associação de Hotéis e Empreendimentos Turístico do Algarve), um ex-ministro das Finanças, Eduardo Catroga.
Ainda um determinado professor da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve, que divulgou um programa-modelo de apreciação da melhoria de qualidade dos destinos turísticos e que, na minha opinião, deveria ter sido enquadrado no segundo dia, e ainda um certo Gabinete da Câmara de Oeiras (ainda estou para entender porquê, mas que não me importo que tenha sido enquadrado no primeiro dia).

Isto para saber o quê?

O que já há muito sabia, e muitos outros além de mim, e há muito critico na minha qualidade de cidadão:

  • que esta aposta no turismo de "massas" já deu o que tinha a dar;
  • que o "sol e praia" (eu prefiro o "bebe e dorme", pela semelhança com o mau exemplo de Benidorm) não chega;
  • que os turistas têm outros destinos de semelhante má qualidade, ao mesmo preço ou a preços ainda mais baratos, e que essa concorrência tende a aumentar;
  • que a carga sazonal é nefasta;
  • que estamos demasiado sujeitos a alguns, poucos, países emissores de turistas;
  • que dependemos demasiadamente do turismo como fonte de riqueza;
  • que não há um Algarve, mas dois ou mais, divididos entre o litoral e todo o resto;
  • que a esperança de vida dos cidadãos aumenta e há um turismo sénior, com dinheiro, que procura destinos calmos, seguros e que a sua atenção se dirige ao que é genuíno e identificativo da região que pretendem visitar, ou seja, o património, natural e edificado, os residentes e a sua cultura.

    (Continua)


  • segunda-feira, junho 20, 2005

    Alma

    Outro dia, em plena blogosfera, um poeta oferecia a sua alma.
    Eu aceitei e estou certo de que todos ficarão a saber porquê.

    • Alma

      Quero dar-te o essencial:
      o som de uma guitarra ao fim da tarde,
      o piano de Chopin tocando ao longe
      e o odor a jacarandá na Praça das Flores.

      Quero dar-te o pôr-do-sol da ria de Faro
      e o verde, a perder de vista,
      que escorre das muralhas do castelo de Silves.

      Quero dar-te o límpido horizonte
      de Armação de Pêra, onde aprendi a amar o mar,
      e o branco-rosa das amendoeiras
      de Alcantarilha, meu eterno recomeço.

      Quero dar-te a minha alma.

    Torquato da Luz, 2005
    Ofício Diário


    sexta-feira, junho 17, 2005

    Um Conto (VIII)

    • De avião

      Invadia-o sempre aquela sensação dúbia de medo e de prazer que lhe trazia o momento de levantar voo.
      Nada o inibia nos momentos de espera após o embarque, absorto no desejo e no receio daquela situação. O tempo de viagem era-lhe quase indiferente. Aborrecer-se-ia talvez nas viagens de longo curso. Nunca tinha feito nenhuma. O que o atraía, de facto, era o levantar e o aterrar. A estranha sensação de se estar no ar, o impulso contra o banco, a leve vertigem, a presença surda e inquietante do perigo.

      Se não fossem estas curvas sucessivas sempre em círculo, de olhos fechados estes aviões de feira deveriam proporcionar a mesma sensação dos aviões reais. Não acham?!


    quarta-feira, junho 15, 2005

    Odelouca e os ambientalistas

    Ribeira de Odelouca, © Carlos Rocha
    Ribeira de Odelouca, © Carlos Rocha

    Quando a construção da Barragem de Odelouca vem à baila, a imprensa agita sempre a defesa ambientalista do lince ibérico e da águia de Bonelli, ou o fantasma da escassez da água (particularmente ameaçador em tempo de seca) e pouco refere, a propósito, o incumprimento das normas nacionais e internacionais ou o excessivo dispêndio de água potável pelos campos de golfe, que crescem por aí como cogumelos, enquanto a moda durar, e de que nada restará senão o deserto, quando a moda passar.

    Os ambientalistas são sempre os maus da fita, como se as suas intervenções pudessem impedir o que quer que fosse se elas não estivessem apoiadas em normas nacionais ou tratados internacionais aceites e votados pelos nossos sucessivos governos.
    É então ao governo, sujeito aos mais diversos lobbies de pressão, que se deve exigir explicações.

    Afirmava outro dia Maria João Lima em Alerta Amarelo o que passo a transcrever:

    • A comunicação social tem um papel importante na divulgação da informação, mas pode ter, em proporção um papel perverso e perigoso, pois tem o poder de criar verdadeiras realidades e lançá-las ao mundo com facilidade (com ou sem intenção, o resultado é o mesmo).
      Um contraponto (ou mais) pode contribuir decisivamente para nos interrogarmos e para assim podermos recriar as nossas realidades.


    É o meu contraponto, o que vos trago hoje.

    P.S.
    No intuito de divulgar o conhecimento das espécies acima referidas e em vias de extinção (não se ama o que se não conhece), deixo-vos um link sobre a águia de Bonelli, com esplêndidas fotografias tiradas no Algarve, documentadas no National Geographic e da autoria de um biólogo português.
    Junto dois links mais, agora sobre o lince ibérico: um para o Programa Liberne, do Instituto de Conservação da Natureza e outro para a Núcleo de Estudos Carnívoros e seus Ecossistemas, sedeado na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

    terça-feira, junho 14, 2005

    Devagar... entras na noite

    • Tempo em que se morre

      Agora é verão, eu sei.
      Tempo de facas, tempo
      em que perdem os anéis
      as cobras à míngua de água.
      Tempo em que se morre
      de tanto olhar os barcos.

      É no verão, repito.
      Estás sentada no terraço
      e para ti correm todos os meus rios.
      Entraste pelos espelhos:
      mal respiras.
      Vê-se bem que já não sabes respirar,
      que terás de aprender com as abelhas.

      Sobre os gerânios
      te debruças lentamente.
      Com rumor de água
      sonâmbula ou de arbusto decepado
      dás-me a beber
      um tempo assim ardente.

      Pousas as mãos sobre o meu rosto,
      e vais partir
      sem nada me dizer,
      pois só quiseste despertar em mim
      a vocação do fogo ou do orvalho.

      E devagar, sem te voltares,
      pelos espelhos entras na noite.

      Eugénio de Andrade
      Quinze poetas portugueses do século XX
      (Selecção e prefácio de Gastão Cruz)
      Assírio & Alvim, Lisboa 2004


    Leia ainda mais Eugénio de Andrade, aqui, neste blog.

    segunda-feira, junho 13, 2005

    Santos Populares

    Santo António, Silves, © António Baeta Oliveira

    Estão aí os Santos Populares! É tempo de Santo António, prenúncio do Verão. As ruas da baixa comercial da minha terra estão engalanadas, em ar de festa, e as esplanadas começam a agitar-se.
    Marchas populares, Silves, Junho 2005, © António Baeta OliveiraAs marchas populares, a noite passada, com o particular empenhamento da 3ª idade, deixaram no ar o sentimento de algum carinho, mas destoaram com o seu ar de marcha lisboeta, solicitando o sacudir da anca e o bater do pé num ritmo serôdio, diria mesmo decadente, fora de época, a contratempo.

    Fui de novo a O Grés, um já extinto jornal em que colaborei, edição de Julho de 2000, rebuscar um texto onde percorria as ruas da minha memória por esta altura do ano, numa toada de evocação, bem ao ritmo das marchas populares, de sabor a passado inconsequente.
    Cá está ele:


    • Nunca mais vi tal coisa!

      Não sei se se deixou de usar, se se teria esgotado ou, simplesmente, se a minha recordação me engana. O facto é que nunca mais lhe pus a vista em cima, ou melhor dizendo, o sapato.

      Refiro-me a um saibro avermelhado, suficientemente grosso para não fazer pó e suficientemente fino para não sujar o pé. Era com este tipo de saibro que se cobria o piso da primeira parte do jardim (Cancela de Abreu), pois que, a seguir ao coreto, logo depois da porta de entrada para a esplanada do cinema, o piso era de tipo diferente. Era deste saibro, também, o piso do Largo dos Bombeiros, na actual Praça do Município, frente aos Paços do Concelho. O curioso é que só me lembro deste saibro vermelho naquela Praça, quando começavam as Festas dos Bombeiros, pois que até essa data não tenho a ideia de que o piso fosse assim.

      Deixemos estas voltinhas em torno da memória, que todos sabemos ser altamente enganadora e fixemo-nos no Largo dos Bombeiros, em plena época dos Santos Populares. Uma roda gigante, a tômbola, imperava ao centro, ou então era tão importante que parecia central. Compravam-se os bilhetes e aguardava-se a saída do nosso número para obter uma modesta prendinha, que nos enchia de satisfação; não era como agora, onde há de tudo no supermercado. Tábuas corridas serviam de mesas ou se, mais baixas, de cadeiras e ficavam repletas de pratos de caracóis. Iam lá todos, não faltava ninguém. Nenhuma telenovela nos prendia em casa, a deixar a vida a correr lá fora.

      (...)


    quinta-feira, junho 09, 2005

    Um Cont(inh)o (II)

    Com votos de um longo e agradável fim-de-semana, mais um microconto (cerca de 50 caracteres):


    • Como actores, na vida, fomos de um naturalismo de gosto duvidoso.

    quarta-feira, junho 08, 2005

    Um hálito de música ou de sonho

    Concerto dos Da Weasel, Silves, Junho 2005, © António Baeta Oliveira


    • Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar.

    Fernando Pessoa (Bernardo Soares)
    Livro do Desassossego
    Assírio & Alvim, Lisboa 2005

    terça-feira, junho 07, 2005

    Livro do Desassossego

    Passou a ser o meu livro de cabeceira. A última leitura antes de adormecer. Mais um blog de visita diária.

    • A Decadência
      (...)
      «Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.»
      (...)

    Fernando Pessoa (Bernardo Soares)
    Livro do Desassossego
    Assírio & Alvim, Lisboa 2005

    segunda-feira, junho 06, 2005

    Isso da cultura serve para alguma coisa?

    Orquestra do AlgarveEsta é já a segunda vez que assisto a um espectáculo de música no novo Auditório Municipal de Lagoa, aqui a 6 quilómetros.
    Um dos grandes méritos deste último concerto da Orquestra do Algarve radicou na primeira audição absoluta de parte da obra de um compositor português - Augusto Machado (1845-1924).
    Sem a existência destas orquestras regionais, dificilmente se recuperariam estas obras e estes autores, já soterrados no pó do esquecimento.

    A iniciativa destes Concertos de Lagoa coube à Academia de Música de Lagos, que possui em Lagoa uma estrutura dedicada ao ensino especializado da música, visando divulgar a música erudita e proceder à formação de públicos.
    Em Silves, nem auditório, nem música (refiro-me a música erudita e não à música de simples divertimento, obviamente), nem estruturas que dêem continuidade ao trabalho da Sociedade Filarmónica Silvense (que tem despertado para esta forma de expressão artística centenas de jovens ao longo dos anos), nem formação de públicos, nem sequer apoio financeiro à nossa orquestra regional. (Leia, a propósito, este texto)
    Um dia destes acontece-nos ver terminadas as tão almejadas obras de restauro do Teatro Mascarenhas Gregório e não termos nem cartaz, nem público, a não ser para meros espectáculos de divertimento que, por si só, não justificam o investimento, que é pago com o dinheiro de todos nós. (Leia ainda o seguinte texto, aqui publicado em Janeiro de 2004)
    Se calhar a cultura não serve mesmo para nada. Ou serve?

    sexta-feira, junho 03, 2005

    Um Conto (VII)

    • Sísifo

      Carlos retinha aquela imagem.
      O seu pé direito no primeiro degrau de acesso à carruagem do comboio. Sobre a porta uma palavra em caracteres brancos.
      Ao longo do corredor, procurando o lugar que lhe fora atribuído, o nº 37, deparou-se-lhe aquela mulher esquálida, de olhar fixo, amamentando a criança que sustinha ao colo.
      Ficou surpreso na vacuidade daquele olhar.
      Dois ou três lugares mais e o rapaz de blusão grosso, abotoado até cima, que lia e fumava tranquilamente.
      Ficou surpreso naquele atavio, numa tarde tão quente de verão.
      Sobre a esquerda uma bela mulher de pernas cruzadas, que revelava as suas coxas por entre a dobra, mal composta, da saia curta.
      Ficou surpreso no seu sorriso, quando ao erguer os olhos encontrou os dela.
      O nº 37. Sentou-se. Compôs-se melhor no seu lugar. Olhou através da janela e viu os campos secos pela estiagem prolongada.
      Ficou surpreso pela inusitada velocidade com que a paisagem se sucedia.

      De repente viu-se de novo com o pé no degrau. O longo corredor. A mulher do olhar vácuo. O rapaz do blusão. A moça, as suas pernas e o seu sorriso. A paisagem seca sucedendo-se demasiado rapidamente.

      De novo o pé no degrau. Sobre a porta a mesma palavra em caracteres brancos - Sísifo.

      Certamente morrera num desastre ferroviário e ficara preso naquele cíclico inferno donde não mais sairia.
      Ou então sonhava e ainda não teria acordado.


    P. S.
    À margem do conto, quero dizer-vos que estou babado com os encómios que me dirigiu o autor do Palácio dos Balcões, a quem já agradeci e que cita este meu blog entre os três melhores que conhece.

    quinta-feira, junho 02, 2005

    Lygia


    Prémio Camões atribuído a Lygia Fagundes Telles.

    A foto e o excerto de um seu conto, que aqui divulgo, fui buscar a Releituras.

    • O moço do saxofone

      (...)
      "Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora."
      (...)


    Amanhã, o conto será meu.

    quarta-feira, junho 01, 2005

    Dos Adoches à Galé

    É hoje o dia da abertura oficial da época balnear.
    A data despertou-me recordações de menino em Armação de Pêra, uma das mais belas praias do meu Algarve, servida por um dos piores exemplos de como se deve fazer turismo em Portugal.

    Trago-vos um texto que publiquei num jornal local, entretanto extinto, O Grés, em Agosto de 2000:

    • Dos Adoches à Galé

      Armação de Pêra, Junho 2005, © António Baeta OliveiraArmação de Pêra, Junho 2005, © António Baeta Oliveira

      Ainda nem se falava de ecologia e nada fazíamos para nos protegermos dos danos provocados pela radiação solar, mas íamos para a praia bem cedo.
      Aquela frescura da manhã, impregnada do cheiro da maresia e animada pela algazarra da azáfama da faina da pesca, com a lota mesmo ali, sobre a areia e o seu cantar repetitivo, ritmado, quase em paroxismo - ..., 49, 48, 47, 46, 45, ... - compõem, hoje, na minha memória, uma aguarela que adoraria possuir e que as fotografias da época, a sépia ou a preto e branco, não reproduzem no colorido pitoresco que agora me acode.

      Era ali a nossa praia, mesmo em frente ao que ainda hoje é o Serol. Junto à esquina, no outro lado da estreita ruela, havia uma velha senhora, de quem não recordo o nome, que numa enorme "panela" cozinhava, imaginem, batatas-doces, e que eram a atracção do meu tempo de menino, superior até aos sorvetes do Sr. Chico - o Chico dos Sorvetes.
      Quando ganhámos idade de começar a cobiçar as coisas que ostentavam as outras crianças, mudámos de praia.
      Explicou mais tarde a minha mãe que a economia da família não suportava o consumo de batatas-doces, sorvetes e outras solicitações de criança, que nos habituariam a um tipo de vida que não deveria ser o nosso.

      Razões económicas transferiram-nos para os Adoches.

      Nesta praia éramos praticamente só nós e outros amigos da nossa idade, os filhos do Sr. Luz, Conservador da Junta Autónoma das Estradas em Alcantarilha. Havia, no entretanto, uma multidão de outras crianças que não ia à praia com os pais, por razões económicas e sociais bem mais graves do que as nossas.
      Quando comecei a entender essas diferenças já ia à praia com os amigos, com partida marcada frente ao rio, em Silves, na camioneta do Sr. Estiveira, e então a praia era toda nossa - dos Adoches à Galé.

      Armação era a aldeia dos pescadores e pouco mais. Se estávamos nos Adoches, por um copo de água teríamos que calcorrear umas boas centenas de metros, até ao poço dos Horta Correia, um pouco antes do que viria a ser o Casino da Praia.
      Armação entretanto cresceu, bastante para os lados, mas bastante mais para cima, e por um pouco de frescura, por um poucochinho de verde, teremos que calcorrear toda a Vila para encontrar um jardinzinho, mesmo em frente do que era o poço dos Horta Correia, um pouco antes do já arruinado Casino da Praia.

      São razões económicas, de peso, mas de sentido contrário às da minha infância, que é imperioso contrariar para salvar Armação de Pêra, que ontem, hoje ou amanhã, por mais gente que cá queiram meter, continuará a estar confinada aos seus limites de sempre - dos Adoches à Galé.