sexta-feira, junho 03, 2005

Um Conto (VII)

  • Sísifo

    Carlos retinha aquela imagem.
    O seu pé direito no primeiro degrau de acesso à carruagem do comboio. Sobre a porta uma palavra em caracteres brancos.
    Ao longo do corredor, procurando o lugar que lhe fora atribuído, o nº 37, deparou-se-lhe aquela mulher esquálida, de olhar fixo, amamentando a criança que sustinha ao colo.
    Ficou surpreso na vacuidade daquele olhar.
    Dois ou três lugares mais e o rapaz de blusão grosso, abotoado até cima, que lia e fumava tranquilamente.
    Ficou surpreso naquele atavio, numa tarde tão quente de verão.
    Sobre a esquerda uma bela mulher de pernas cruzadas, que revelava as suas coxas por entre a dobra, mal composta, da saia curta.
    Ficou surpreso no seu sorriso, quando ao erguer os olhos encontrou os dela.
    O nº 37. Sentou-se. Compôs-se melhor no seu lugar. Olhou através da janela e viu os campos secos pela estiagem prolongada.
    Ficou surpreso pela inusitada velocidade com que a paisagem se sucedia.

    De repente viu-se de novo com o pé no degrau. O longo corredor. A mulher do olhar vácuo. O rapaz do blusão. A moça, as suas pernas e o seu sorriso. A paisagem seca sucedendo-se demasiado rapidamente.

    De novo o pé no degrau. Sobre a porta a mesma palavra em caracteres brancos - Sísifo.

    Certamente morrera num desastre ferroviário e ficara preso naquele cíclico inferno donde não mais sairia.
    Ou então sonhava e ainda não teria acordado.


P. S.
À margem do conto, quero dizer-vos que estou babado com os encómios que me dirigiu o autor do Palácio dos Balcões, a quem já agradeci e que cita este meu blog entre os três melhores que conhece.

7 comentários:

Aburrido disse...

Interesante historia, yo tambiem puedo leer portugues, pero no lo escribo. Un Saludo desde lejos

Jonathan

Anónimo disse...

"Sísifo"
a repetição em espiral de tudo o que se desenrola no coração humano
Belo ou trágico? Sei lá! Gostei, está simples e profundo.
Luisa

hfm disse...

Mais um, António, dos que nos agarra na primeira palavra e nos leva até onde a nossa e a tua imaginação se podem encontrar.

Tão aparentemente simples e,contudo, tão complexo!

Anónimo disse...

Se aceitarmos o conceito de que o "estilo é o Homem", vislumbro no intertexto do teu conto,a impossível interferência sobre a realidade irreal.
Descodificação de uma escrita onde, um dia, nos achámos, não por acaso.

luis ene disse...

Muito interessante, amigo António. Mas devo confessar que a referência a Sísifo me parece desnecessária. Talvez porque guardo da agonia de Sísifo (via camus) uma parábola da própria existência. Aqui recordou-me mais o mito do eterno retorno...

Unknown disse...

Também hesitei no título, dadas as diversas interpretações do mito, mas o eterno retorno está presente no mito de Sísifo, apesar de tudo. Poderia não o ter titulado, talvez deixado só inscrito sobre a porta da carruagem.
Obrigado Luís.
Um abraço.

Unknown disse...

Obrigado a todos os que me leram e comentaram.
Continuarei com os contos por mais algum tempo.