terça-feira, junho 14, 2005

Devagar... entras na noite

  • Tempo em que se morre

    Agora é verão, eu sei.
    Tempo de facas, tempo
    em que perdem os anéis
    as cobras à míngua de água.
    Tempo em que se morre
    de tanto olhar os barcos.

    É no verão, repito.
    Estás sentada no terraço
    e para ti correm todos os meus rios.
    Entraste pelos espelhos:
    mal respiras.
    Vê-se bem que já não sabes respirar,
    que terás de aprender com as abelhas.

    Sobre os gerânios
    te debruças lentamente.
    Com rumor de água
    sonâmbula ou de arbusto decepado
    dás-me a beber
    um tempo assim ardente.

    Pousas as mãos sobre o meu rosto,
    e vais partir
    sem nada me dizer,
    pois só quiseste despertar em mim
    a vocação do fogo ou do orvalho.

    E devagar, sem te voltares,
    pelos espelhos entras na noite.

    Eugénio de Andrade
    Quinze poetas portugueses do século XX
    (Selecção e prefácio de Gastão Cruz)
    Assírio & Alvim, Lisboa 2004


Leia ainda mais Eugénio de Andrade, aqui, neste blog.

1 comentário:

hfm disse...

Bela homenagem, António.