terça-feira, julho 20, 2004

Uma luz que dói

Retorno a Casimiro de Brito. Hoje, na página do seu diário com data de 20 de Julho:

    Ensino à menina: os castelos que fazemos na areia desmoronam-se em poucas horas. Não chores. As casas onde moramos duram um pouco mais. E nós, pai? Umas vezes um pouco mais, outras vezes um pouco menos.

    Escrever é como se fosse na areia. As palavras têm a intensidade de uma concha na palma da mão - uma concha que tivesse também um coração. Vem depois uma onda, um rebanho de ondas que levam a concha para longe. O mistério do coração.

    A poesia de Sophia. Tanta serenidade. Parece que há só luz. A luz de uma escrita que "transcreve" o essencial da vida, ao lado e longe e dentro e ainda longe do sujo, embora o aceite, embora o resuma. Uma luz que dói. Uma dor que ela parece aceitar como se fosse apenas o mundo a mudar, o corpo. Assim é.

      • Sophia de Mello Breyner Andresen
        (Porto, 1919)

        Meditação do Duque de Gândia sobre a morte de Isabel de Portugal

        Nunca mais
        A tua face será pura limpa e viva
        Nem o teu andar como onda fugitiva
        Se poderá nos passos do tempo tecer.
        E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

        Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
        A luz da tarde mostra-me os destroços
        Do teu ser. Em breve a podridão
        Beberá os teus olhos e os teus ossos
        Tomando a tua mão na sua mão.

        Nunca mais servirei quem não possa viver
        Sempre,
        Porque eu amei como se fossem eternos
        A glória, a luz e o brilho do teu ser,
        Amei-te em verdade e transparência
        E nem sequer me resta a tua ausência,
        És um rosto de nojo e negação
        E eu fecho os olhos para não te ver.

        Nunca mais servirei senhor que possa morrer.



1 comentário:

Anónimo disse...

escrever é como se fosse na areia, mas os poetas procuram as heranças e o papá publica o primeiro livro (e o segundo, e o terceiro até haver audiência ou editora de amigos que continue o favor da eternidade). Depois moramos, não por capricho do destino, uma vivenda na orla costeira e escrevemos escrevemos escrevemos poemas sobre o mar.
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