sexta-feira, julho 01, 2005

Um Conto (IX)

  • Una furtiva lagrima

    Estava longe. Sentia a sua falta.
    Barbeava-me ao espelho quando me pareceu que a minha face, ali reflectida, se esvanecia. O espelho parecia perder a sua consistência. Ganhava uma superfície aquática. Como um espelho de água.
    Aproximei o dedo. Toquei, experimentando, e senti que o dedo mergulhava. Retirei-o. Estava molhado. Levei-o à boca e senti um sabor a sal.

    Olhei-me nos olhos e através deles divisei a sua face. Uma alegria intensa percorreu-me o corpo. Senti que havia uma sintonia perfeita entre os nossos pensamentos. Como se ela estivesse ali. Aqui. Na minha frente. Comigo.
    Uma lágrima descia, lentamente, pela sua face.

    Senti de novo um estranho rumor à superfície e notei que o espelho retomava a sua consistência habitual.

    Via-me agora nitidamente. Sobre a face esquerda, escanhoada, uma lágrima encaminhava-se dos meus lábios. Toquei-lhe com a ponta da língua. Sabia a lágrimas. Sabia a sal.


8 comentários:

hfm disse...

Depuradamente belo!

jcb disse...

Excelente, António!

L disse...

Gostei!

Anónimo disse...

Gostei do blog, convido a visitar este antro deveras interessante pelo simples facto, que lá na Arca, escrevem os mais prodigiosos inventores da escrita zoófila. Passe e comente...abraços bloguistas
e se gostar "link"

www.arcadobue.blogspot.com

Santos Passos disse...

Antonio: brilhante, este conto. O espelho muda de estado (ora sólido, ora líquido). Os sentimentos também se alternam.
Há ainda o mar, as lágrimas, sal e água.
Vários níveis de significado, como se espera da arte.

Anónimo disse...

Belo desenrolar de reflexo liquefeito da mistura de fulgores,atraindo-se separados.transfigurando-se na vertigem de azulada visão unificante,ilusóriamente.
Luisa

Softy Susana disse...

é curioso que ressalve o sal das lágrimas pois, se há coisa que me fascina e me intriga no rol de emoções da vida, é o facto de as lágrimas saberem a mar. Serão, pois, um retornar ao nosso estado incial?

Anónimo disse...

Obrigado. Conforta a amizade on line.Quanto ao comentário...(também eu poderei inseri-lo manualmente?):
"Olá, António, pesa-me o tempo de privação da Internet, mas o tempo se recupera, precisamente, a tempo de apanhar fresco o seu conto IX. Duplamente interessante, primeiro, porque me fez lembrar um miniconto meu, publicado em LENDAS LEGENDA (2003), com idêntica técnica de imagem distorcida (mandar-lho-ei, em breve), depois porque o achei bem conseguido, de belo efeito, surpreendente sequência de realidade e ficção. Parabéns. Um abraço. fcr."