Em noite de mudança da hora legal
Era tarde. Resolvi regressar.
Desci, compassadamente, a avenida sobre o rio, vendo partir alguns barcos para a faina do mar. As luzes de bordo reflectiam-se no negrume da água, sugerindo-me, na noite, uma qualquer fantasmagoria que me inquietou. Aproximei-me do carro. Olhei o meu relógio. Eram precisamente duas horas da noite. Abri a porta, sentei-me ao volante, coloquei o cinto de segurança e ia rodar a chave na ignição quando dei pela sua presença, sentada, a meu lado.
- Estavas aí? Como vieste?
- Ora! Resolvi vir ao teu encontro.
Beijou-me, longamente, e perdemo-nos em jogos de amor. Nem dei conta do tempo que ficámos ali, naquele rodopio estonteante, naquele nosso deslumbramento, naquela tranquilidade dos corpos saciados, naquele remanso doce do amor.
- Vamo-nos. Faz-se tarde.
Compus-me de novo ao volante, rodei a chave. No rádio o locutor informava:
«São duas horas da madrugada».
- Duas horas? Mas, eram duas horas quando...
Olhei para o lado. Ela não estava lá.Terei sonhado? Pareceu-me tudo tão real.
Ao chegar a casa consultei o meu relógio. Eram quatro horas.
Cerca de dez minutos depois chegava ela. Surpreendido, perguntei-lhe:
- Onde estiveste?!
- Onde estive!? Vieste tão apressado que nem deu para te acompanhar, ao longe.
- ?!?!?! Vim... normalmente... até demorei bastante.... parece-me.
- Deves ter demorado uma hora, mais ou menos.
- Só uma hora?
- Sim, uma hora. Pouco antes de chegar, o rádio, no carro, informava que eram três horas da madrugada.
- Mas no meu relógio são... Ah
quarta-feira, novembro 29, 2006
Um Conto (XXIII)
terça-feira, novembro 28, 2006
Mário Cesariny faleceu
© Instituto Português do Livro e das Bibliotecas
Em homenagem a Cesariny, apetecia-me passar aqui a sua Pastelaria, mas já o fiz por duas vezes (pode, no entanto, lê-la aqui).
Recordemo-lo, então, com um seu outro belo poema:
- You are welcome to Elsinore
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
Mário Cesariny
Quinze Poetas Portugueses do Século XX
Selecção e Prefácio de Gastão Cruz
Assírio & Alvim, Lisboa 2004
segunda-feira, novembro 27, 2006
Parabéns, Torquato!
Acrílico sobre tela (pormenor)
- Dúvida
A dúvida é a única certeza:
nada é seguro, tudo é vago e incerto.
Nem sempre a natureza
favorece o clima
que gera oásis no deserto.
Gostava de crer acima
de qualquer hesitação
ou egoísmo,
mas não me é possível, não,
esconder o cepticismo.
Só não vacila quem crê
apenas no que vê.
Torquato da Luz
Ofício Diário
sexta-feira, novembro 24, 2006
Um Cont(inh)o (XIII)
Aqui está algo que não fazia há algum tempo - um microconto (cerca de 50 caracteres):
Andei perdido no tempo que me roubaram no dia em que a hora mudou.
quarta-feira, novembro 22, 2006
Esquecido num cigarro
É no cigarro que me esqueço
no fim
da tarde que devagar desce a calçada.
O muro a que me encosto
ficará
numa baça lembrança
do que foi
a minha desvanecida imagem
do que fui.
Recordando uma antiga fotografia comentada - Diversidade de opinião (clique) - publicada em 22 de Agosto de 2003.
segunda-feira, novembro 20, 2006
Em Silves, vendo o tempo passar
Luiza Neto Jorge viveu em Silves. Desse tempo ficou uma publicação que recebeu o título Silves 83.
Águas passadas
não moem rodízios
de moinhos
Águas passadas
não moem ruínas
de moinhos
Luiza Neto Jorge
Poesia
Silves 83
Assírio & Alvim, Lisboa 2001
P.S.
O título que dei ao post tem a ver com algum desencanto que se vive na cidade; desmazelo e obras por todo o lado, paradas, sem fim à vista, ausência de iniciativas culturais, de vida comercial, de vivência social, de perspectivas.
Um marasmo.
O problema maior é que, quando se trata de civilização, ficar parado não significa ficar no mesmo estádio de desenvolvimento, mas recuar, no que chamaria de involução.
sexta-feira, novembro 17, 2006
A várias mãos
- Mãos
túrgidas no amanho do peixe
ágeis sobre as teclas de um piano
calejadas no esforço da picareta
hábeis na moldagem do barro
nervosas num momento de tensão
humedecidas na convulsão do choro
frementes no apelo do desejo
largas na expressão da dádiva
abertas ao acolhimento
em punho na explosão da raiva
trucidadas num acidente de trabalho
envelhecidas pelo passar do tempo
quentes num coração frio
frias num coração
quente quando num gesto de afeição.
Recordando uma outra fotografia comentada - Como uma almenara (clique) - publicada em 8 de Agosto de 2003.
quarta-feira, novembro 15, 2006
Timbuktu, uma das 21 Maravilhas do Mundo
(Clique na imagem para mais fotos)
Thank you, Melissa
Timbuktu é a minha cidade mítica, a inatingível, aquela para onde vão as caravanas que se dirigem às paragens mais remotas e donde regressam as que vieram dos confins do mundo.
Amin Maalouf, escritor de origem libanesa, um dos mais conceituados romancistas na vertente do romance histórico, levou-me a Timbuktu (Toumbouctou, em francês) na caravana de um dos mais prestigiados viajantes de sempre, Leão, o Africano, editado em português pela Bertrand, cuja leitura me impressionou profundamente. Recordo ainda outro lugar remoto e mítico, cruzamento de caravanas e civilizações, sobre o qual Amin Maalouf escreveu, também em edição da Bertrand - Samarcanda.
Pois não é da cidade mítica que vos quero falar. É da cidade real, da actual cidade de TIMBUKTU, no Mali, próxima das margens do Níger, famosa há mais de um milhar de anos; é da sua universidade com milhares de estudantes, do inestimável espólio dos seus livros milenares, das suas construções em terra, desta cidade que é Património da Humanidade (UNESCO).
Timbuktu é uma de entre as 21 candidatas à eleição das Novas 7 Maravilhas do Mundo.
Lisboa será o palco onde se dará a conhecer o resultado da votação que envolve já perto de 20 milhões de pessoas e onde se conta com 100 milhões de intenções de voto.
Quantos se lembrarão destas modestas construções de terra, em Timbuktu, quando a atenção de cada povo se centra sobre os exemplares mais significativos da sua região e onde países como os Estados Unidos, o Japão, a Rússia, a China, dos mais populosos do mundo, têm os seus próprios exemplares em que votar? Quantos africanos terão acesso à Internet ou até ao telefone para fazer valer o seu voto regional?
Vote, e quando votar, lembre-se de TIMBUKTU entre as suas preferidas Sete Maravilhas do Mundo (clique para votar).
NOTA:
Não perca estas outras e muito belas fotos, aqui. (clique)
terça-feira, novembro 14, 2006
Novos poetas algarvios (VII)
Termino hoje esta ronda pelos cinco poetas que constam da Antologia dos Novos Poetas Algarvios. Os poemas que aqui transcrevi, escolhidos de entre alguns outros, obedeceram a opções de extensão, adequando-os a este tipo de suporte, e de meu gosto pessoal. Não traduzem certamente as opções dos seus autores ao colocá-los por determinada ordem ou até as da organizadora da publicação, Maria Aliete Galhoz, quando escreve na apresentação:
«A poesia não é mais a visitação do "lugar ameno" real ou num imaginário possibilitado.
A poesia destes cinco "novos poetas algarvios" não se compraz em si, não glosa estereótipos, nem de paisagem nem do "sujeito".»
Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005
segunda-feira, novembro 13, 2006
Novos poetas algarvios (VI)
Fumar o sopro da vida, travar-te no pulmão, reter-te respirar-te
Constróis-me como num parto, vivo por dentro de ti como um feto
És o músculo que empunha o martelo, o ferreiro que bate, aperfeiçoando,
[o metal
O cavalo alado da minha juventude, excitando-me, amedrontando-me,
[atiçando-me
O abanador que espalha a minha fogueira, que espalha o meu calor
O índio que me cura espetando agulha
És a árvore, eu era o fruto caído no chão que germinou com o teu cheiro
E agora estamos os dois aqui, olhando-nos como vitrais de Igreja
Permanecemos
Com o vento abanando nossos frutos verdes
Ruben Gonçalves
Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005
sexta-feira, novembro 10, 2006
Ao jeito de um fotoblog (III)
Denúncia da sua presença.
Tensão da sua ausência.
A partir de hoje vou deixar de usar aquele título - "Ao jeito de um fotoblog" - pois pude aperceber-me que uso com frequência, desde o primeiro mês de existência deste blog, comentar, de forma pretensamente poética, algumas fotografias, de minha autoria, que aqui vou colocando.
Continuarei a usar a fotografia comentada, mas com titulação própria.
Irei também recordando alguns desses posts com fotografias comentadas, em anos anteriores, de cada vez que aqui publicar uma nova fotografia com um comentário a seu propósito.
Aqui vai a primeira - Entardecer (clique) - publicada em Julho de 2003.
quinta-feira, novembro 09, 2006
Novos poetas algarvios (V)
- AVÉ MUNDI
LE MONDE EST MORT...
VIVE LE MONDE!
O mundo morreu.
Fui hoje
Ao seu funeral.
A tristeza
Era muita,
Tanta,
Que me esqueci
Do meu...
Ricardo Paulo
Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005
Ricardo Paulo é natural de Silves.
quarta-feira, novembro 08, 2006
Novos poetas algarvios (IV)
Boca aberta que tens plátano em ti,
Dessa copa aberta e agra
Abisma-me o contorno de giz, quarto encerrado, voz tácita.
O gesto de morte desse braço aberto de meio,
Mãos esculpidas de pedra
Têm nas unhas de mármore o sangue calcinado,
Pintado em tons de aspar,
Rastreio poluto, asco asceta.
Sôfrega pulsa ânsia
Apura o odor desse peso que caminha lento na incerteza
Do fatídico.
Pedro Sousa
Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005
terça-feira, novembro 07, 2006
Novos poetas algarvios (III)
Fixamos num olhar o engano mútuo
trocamos umas palavras por necessidade de esclarecimento
separamo-nos nessa noite tão frios
na proximidade inventamos uma distância
Decidimos pelo melhor um beijo no rosto
traçando uma linha de amizade
insuficiente para o estado em que acabamos
com vontade dos lábios um do outro
João Bentes
Do Solo ao Sul
(Antologia de Novos Poetas Algarvios)
ARCA (Associação Recreativa e Cultural do Algarve), Faro 2005
segunda-feira, novembro 06, 2006
Aniversário de Sophia
Sophia nesceu no Porto a 6 de Novembro de 1919.
Recordemo-la, no seu amor pelo Algarve.
- A Conquista de Cacela
As praças fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza
Porém Cacela
Foi desejada só pela beleza
Sophia de Mello Breyner Andresen
Algarve todo o mar
(Colectânea)
Dom Quixote, Lisboa 2005
quinta-feira, novembro 02, 2006
Pela Feira de Todos-os-Santos
Fui ao ensaio, antes da estreia.
Escondi-me nos bastidores.
Dizem que já nada é como era, mas eu, com os olhos de quem está por detrás, embora dentro do palco, entendo que esse é o olhar de quem assiste à cena e não faz parte dela. Por dentro, tudo se mantém, igual, como o próprio Homem, com os seus anseios e as suas misérias.
Avistei a cenografia do Carrossel 8 e pude apreciar, apesar dos motivos pintados de novo, a sugerir um novo gosto, mais ao gosto dos novos clientes, a forma como o maquinista interpreta o seu trabalho, como conhece cada uma das porcas que apertam aquele carril, como sabe da sequência da montagem do camelo ao lado da girafa, que fica por trás do leão que, cobiçoso, observa a gazela. Como sabe da data em que pela primeira vez o carrossel se apresentou em cena, na Feira de Famalicão, como fazia a volta a Portugal, de Norte e Sul, e como se ficou, a rolar no mesmo lugar, até que o recuperaram, para esta nova peça, quando fechou a Feira Popular em Lisboa.
Tudo isto de improviso, sem recurso a texto, porque tudo flui como um dia após o outro, porque não há dramatização quando o drama é a própria vida, porque não há enredo enquanto a vida se vive.
Senti essa verdade quando o Mário Martins, o contra-regra, me falou na cena da Esfera da Morte em bicicleta a pedal.
O Mário é filho do Zé Martins, esse herói do combate à força centrífuga, negando a toda a hora uma queda na vertical.
O Mário ainda vive em cena, como um velho actor, que só abandonará o palco quando o abandonar de vez, definitivamente.
Saímos dos bastidores e evocámos a saudade nuns copos de cerveja, olhando as farturas, as amêndoas, as castanhas, as bolotas, os peros, em fim de tarde, com o Sol a baixar, já numa luz coada, marcando o seu tom outonal sobre os alhos e as cebolas, nesta Feira de Todos-os-Santos do ano de 2006.
P.S.
Permitam-me um apelo à vossa participação em
(Clique sobre a imagem)