Gosto dela assim: ainda vibrante dos passos que a deixaram a sós comigo desobrigada de abrigar seus moradores Comigo é diferente: não me limito a usá-la a habitá-la: namoro com ela Comigo abandona-se a seus mais íntimos rumores e cheiros e aliviada do dever de ser útil em silêncio canta
Teresa Rita Lopes ALGARVE todo o mar (Colectânea) D. Quixote, Lisboa 2005
Já os tinha ouvido, quando o APARTE/Racal Clube ainda existia, e voltei a ouvi-los de novo agora, na Biblioteca Muncipal, se bem que sem a sua formação completa, mas com os dois principais criativos: o Zé Carlos Severino, no bandolim, e o Mário Bacelar, no violão.
Recreio-me nos acordes que me evocam o Sol e o Mar e abandono-me na corrida do bandolim, instalando-me nos sons mais graves e confortáveis do violão. Gosto de viajar com riscos, mas sem perigo. É da minha natureza: meio louca, mas controlada. Coisas de criação!
Ouçam então esta faixa que escolhi e deixem-se embalar, como eu, quando a música desperta estas minhas raizes de homem do Sul.
Boca. Brûlure, blessure. Onde desembocam, como se diz em nome, os canais muitos. Pura consumpção em voz alta, ou num murmúrio, entre sangue venoso, ou traça de lume. Gangrena, música, uma bolha. Arte medonha da paixão. Um poro monstruoso que respira o mundo. Nele se coroam o escuro, o fôlego, o ar ardido. O ouro, o ouro. Tubo sonoro por onde se coa o corpo. Se escoa todo.
Herberto Helder Flash Ou o Poema Contínuo Assírio & Alvim, Lisboa 2004
Casimiro de Brito veio a Faro sem a companhia de seu amigo e seu irmão nas letras, António Ramos Rosa; mas o poeta que sabe como bate o coração esteve entre nós, na biblioteca que recebeu o seu nome e onde a sua voz se fez ouvir, na voz de outros que a tomaram como sua. É assim que a poesia acontece.
Coube a José Carlos Barros, meu estimado amigo, a responsabilidade pela apresentação desta última publicação de Casimiro de Brito, numa edição de 4Águas Editora, sob a direcção de Fernando Esteves Pinto, que também conto como bom amigo, e do seu sócio neste projecto editorial, Vítor Cardeira. Já em Abril de 2007 José Carlos Barros tinha apresentado um outro trabalho de Casimiro de Brito, dessa feita na Biblioteca de Loulé. É para esse texto que vos remeto (clique), evitando alongar este post, que está mesmo a precisar de um poema para que se cumpra.
A luz trocada em olhos que ficaram subitamente cegos, e depois as palavras, cautelosas, dizendo a seda dos corpos sós. O desejo foi polindo em silêncio um fruto em busca da sua maturação. A teu lado me deito e bebo a água que tu me abres e onde me perco e ardo e tudo. Aqui tens o meu corpo cheio de mundo. Amar-te é viagem que não se acaba e contigo vou, para o alto e para o fundo.
Casimiro de Brito 69 Poemas de Amor 4Águas Editora, Tavira 2008
É nestes locais que consagrámos ao Sol que mais sinto a nostalgia de um ocaso; assim, quando se esconde nas tardes de Outono, decaindo, num desmaio lento e silencioso sobre a linha do horizonte.
Visões do Sul (clique), foi o título atribuído a esta 1ª Mostra Internacional de Cinema, numa louvável iniciativa do Museu de Portimão, de atenção voltada para o cosmopolitismo de um dos seus maiores, Manuel Teixeira Gomes, e às suas viagens pelo Mediterrâneo, este Mar do Sul.
Assisti a todos os filmes das sessões da tarde, à excepção das projecções de segunda e sexta, e vibrei intensamente com os testemunhos, quase diria manifestos, deste olhar sobre as sociedades da outra margem, a não-europeia deste mar comum.
Em Jellyfish (clique), o autor, israelita, sem a preocupação das motivações associadas ao cinema comercial, trouxe-nos uma sociedade cuja descrição não assenta no terrorismo nem no ódio, antes se debruça sobre o dia-a-dia de uma série de personagens, cujas histórias se entrecruzam, numa teia reveladora das dificuldades e dos anseios de gente comum e nos fala sobretudo de problemas de comunicação: ou pela solidão, ou pela idade e mentalidade, pela diferença linguística dos que imigram, pela busca do emprego, pelo absurdo das situações e da própria vida, pelo amor...
Em My Marlo and Brando (clique), de realização turca, seguimos a história de amor de uma mulher; que deixa tudo para trás e percorre os difíceis caminhos que a levam de Istambul ao Irão para se encontrar com o seu amado, que em sentido inverso a procura, partindo ao seu encontro, em fuga de uma guerra no Sul do Líbano. Assim têm lugar os fortes contrastes sociais e morais entre uma mulher urbana, proveniente de uma grande cidade, e o mundo masculino do Irão rural.
Em Bab Septa (A Porta de Ceuta), Pedro Pinho, que esteve presente para comentar e responder a questões do público sobre o seu filme, realizou com Frederico Lobo este documentário sobre o fenómeno da migração sub-sariana para a Europa, a partir do Norte de África. É tocante a forma como nos revela o desespero desta gente em busca do El Dorado, como única forma de libertação de uma vida sem horizontes, nas sociedades para lá do Saara, e onde, apesar do drama, esta gente brinca sobre o seu infortúnio, acalentando o sonho de vir a dar aos seus filhos um futuro melhor.
Com Under the Bombs, de realização franco-libanesa, vivi o filme que mais profundamente mexeu comigo. Uma mulher, emigrada na Europa, vem para o Líbano mal sabe dos ataques israelitas no Sul do seu país, para se juntar a seu filho e a sua irmã, com quem o tinha deixado. Deixem-me que vos diga que este filme é realizado em cenário real, com gente real, sendo a história protagonizada por actores, que se misturam com gente comum. Trata-se de uma ficção sobre a realidade, um novo modelo de cinema, onde o documentário e a ficção se fundem num todo. Esta mulher não quer saber da guerra, de quem ataca ou de quem defende, se o inimigo é o israelita ou o culpado é o Líbano e a sua política, ela quer saber do seu filho cuja vida está em perigo e não aceita estas sociedades vizinhas, de rostos iguais em ambos os lados da fronteira, mas permanentemente em guerra em nome de Deus e das interpretações religiosas.
Se estes filmes fossem vistos pela população que comummente vai ao cinema, talvez muita coisa mudasse nos preconceitos que o desconhecimento gera.
O MAR é tema frequente na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Hoje, 6 de Novembro, data em que no Porto nasceu, no já distante ano de 1919, foi o poema que escolhi para a evocar, recordando também uma amiga minha, que há pouco faleceu, no esplendor da sua juventude, e que tanto amava Sophia e o mar.
Mar Sonoro
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim, A tua beleza aumenta quando estamos sós E tão fundo intimamente a tua voz Segue o mais secreto bailar do meu sonho, Que momentos há em que suponho Seres um milagre criado só para mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen Quinze Poetas Portugueses do Século XX (selecção e prefácio de Gastão Cruz) Assírio & Alvim, Lisboa 2004