Embora conheça o poeta, perdi há muito o contacto com a sua poesia.
Voltei a encontrá-la de novo em Escritores Portugueses do Algarve, numa publicação das Edições Colibri.
O poema que transcrevo tocou-me no que de mais autêntico e profundo há no meu próprio ser, do que me alimentei a partir do ambiente envolvente, da paisagem, da gastronomia, dos costumes e tradições, desta terra da minha infância que Palma Dias canta como nunca antes senti.
Um deslumbramento.
- Alvorada
Lembro as terras de infância o sossego do sal
As águas lentas dos esteiros, a foz
Do Guadiana
O voo das francelhas do castelo
Cometas e morcegos, gaviões do cair da noite no
[crescer do Verão
O porto-cais de madeira com a lua cheia
... cheira a Japão e China
A rio com os tamancos mouros
A maresia
A levante
Com o sapal branco de gaivotas na tormenta
[Terra marismeña]
Piras de Sal
Nortada (restêvas)
Fadas e moiras
Quimeras (relento)
Lume brando do caldeiro
Panela de ferro
Cozido com xíxaros e peras
Toucinho amanteigando o pão
O forno de São Bartolomeu, o barrocal, o arvoredo
A feira de Setembro com os pêros, suspiros e copinhos de medronho
A corredoira
A estila
O nógado, a casa do azeite e o lagar
Avô de chapéu, cajado, barbas como vi na Índia
O prazer de um figo na ialva e
Atravessar em Monchique, a floresta do Norte
Luz que desmamou, pais
Na volta à terra pelo São João
Fogueiras, mastros, murta e alecrim, ninhos
Aldeias de laranja
Ou o Senhor Morto matraqueando a noite
A noite noite, noite de capuzes
Noite balandrau
Noite de velas incenso, damasco roxo
Noite de salmoira
Grave
Com o rosmaninho atapetando o chão
E as mulheres gritando a agonia
A infinda morte naufragada.
Perfumes de mistura, farrôba e marmelo
Arrôbe
Adega com vinho
Açôrda com poêjo
Açafates de bilros
Meias de cinco agulhas, mantas de Serra
Água do Cabeço, barca, ameijoas
Conquina, as pinhas do mirante
Um escorpião de oiro
O sussurro onde tinem todas as estrelas e
Em grandes abóboras, cintilantes
Carroças da bela adormecida...
... ai o que nos resta de um país azul
Serão os velhos livros, suas capas lindas
Ou serão histórias da Senhora dos Mártires
Promessas pagas com trigo e azeite, cera e frangos
Oiro, a marca das fitinhas
A seda de todas as cores
A prôa de Sagres
O cavaleiro andante da eterna mocidade?
O mal se espanta
Descobre-se
Que não cansa
Sempre alcança, continua
Cantado
Trauteando
Pela rua do Estácio
Atravessas Tudo.
Francisco Manuel Palma Dias
Onde Amar Começa a Terra Acaba
Guimarães Editores, 1985
Ilena Luís Candeias Gonçalves
Escritores Portugueses do Algarve
Edições Colibri, Lisboa 2006
P.S.
A minha transcrição respeitou a escrita original.
1 comentário:
Como gostei de ler!
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