segunda-feira, novembro 09, 2009

A Alvorada, de Palma Dias


Embora conheça o poeta, perdi há muito o contacto com a sua poesia.
Voltei a encontrá-la de novo em Escritores Portugueses do Algarve, numa publicação das Edições Colibri.

O poema que transcrevo tocou-me no que de mais autêntico e profundo há no meu próprio ser, do que me alimentei a partir do ambiente envolvente, da paisagem, da gastronomia, dos costumes e tradições, desta terra da minha infância que Palma Dias canta como nunca antes senti.
Um deslumbramento.

  • Alvorada

    Lembro as terras de infância o sossego do sal
    As águas lentas dos esteiros, a foz
    Do Guadiana
    O voo das francelhas do castelo
    Cometas e morcegos, gaviões do cair da noite no
                        [crescer do Verão
    O porto-cais de madeira com a lua cheia
    ... cheira a Japão e China
    A rio com os tamancos mouros
    A maresia
    A levante
    Com o sapal branco de gaivotas na tormenta

                                           [Terra marismeña]

    Piras de Sal
    Nortada (restêvas)

    Fadas e moiras
    Quimeras (relento)

    Lume brando do caldeiro
    Panela de ferro
    Cozido com xíxaros e peras
    Toucinho amanteigando o pão
    O forno de São Bartolomeu, o barrocal, o arvoredo
    A feira de Setembro com os pêros, suspiros e copinhos de medronho
    A corredoira
    A estila
    O nógado, a casa do azeite e o lagar
    Avô de chapéu, cajado, barbas como vi na Índia
    O prazer de um figo na ialva e
    Atravessar em Monchique, a floresta do Norte
    Luz que desmamou, pais
    Na volta à terra pelo São João
    Fogueiras, mastros, murta e alecrim, ninhos
    Aldeias de laranja
    Ou o Senhor Morto matraqueando a noite
    A noite noite, noite de capuzes
    Noite balandrau
    Noite de velas incenso, damasco roxo
    Noite de salmoira
    Grave
    Com o rosmaninho atapetando o chão
    E as mulheres gritando a agonia
    A infinda morte naufragada.

    Perfumes de mistura, farrôba e marmelo
    Arrôbe
    Adega com vinho
    Açôrda com poêjo
    Açafates de bilros
    Meias de cinco agulhas, mantas de Serra
    Água do Cabeço, barca, ameijoas

    Conquina, as pinhas do mirante
    Um escorpião de oiro
    O sussurro onde tinem todas as estrelas e
    Em grandes abóboras, cintilantes
    Carroças da bela adormecida...

    ... ai o que nos resta de um país azul
    Serão os velhos livros, suas capas lindas
    Ou serão histórias da Senhora dos Mártires
    Promessas pagas com trigo e azeite, cera e frangos
                                            Oiro, a marca das fitinhas
    A seda de todas as cores
    A prôa de Sagres
    O cavaleiro andante da eterna mocidade?

    O mal se espanta
    Descobre-se
    Que não cansa
    Sempre alcança, continua
    Cantado
    Trauteando
    Pela rua do Estácio
    Atravessas Tudo.

Francisco Manuel Palma Dias
Onde Amar Começa a Terra Acaba
Guimarães Editores, 1985

Ilena Luís Candeias Gonçalves
Escritores Portugueses do Algarve
Edições Colibri, Lisboa 2006

P.S.
A minha transcrição respeitou a escrita original.

1 comentário:

hfm disse...

Como gostei de ler!