É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.
A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga, Diogo Freitas do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues.
Irei terminar com Marcelo Rebelo de Sousa.
- EU VINHA POR UM POUCO DE VIDA
Eu vinha pela frescura da seda,
pela promessa da água na tua boca
limpa como um alvéolo, como uma fonte.
Eu vinha pela hospitalidade dos teus braços
abertos sobre as dunas, sobre as camas,
sobre a areia macia das paixões furtivas.
Eu vinha pela sede e pela aventura,
com a desabrida idade dos corsários,
dos animais enleantes ziguezagueando
pelo meio dos juncos e das pedras.
Eu vinha pela desordem dos planetas
no meu livro dos mistérios do céu,
no meu mapa dos assombros da alma.
Eu vinha pelo doce veneno de uma língua
semeando no meu corpo os sinais da perdição.
Eu vinha com o sal nos olhos, ardendo
com o lume a queimar-me a fala
e pedia à água para ser chuva
e à chuva, num repente, para ser mar.
Eu vinha por um pouco de vida, só um pouco,
no tumulto da minha existência de papel.
José Jorge Letria
Os poemas da minha vida
Marcelo Rebelo de Sousa
Público, Lisboa 2005
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