O Caderno do Algoz, editado pela Caminho, levou-me a Faro, já que não pude estar presente na sua apresentação em Silves, na Biblioteca Municipal.
O Sandro William Junqueira é meu amigo através destas coisas das palavras e de as dizer, mas sempre o senti mais próximo da poesia que da prosa, o que não admira, pois este "caderno" é mesmo a sua primeira obra de ficção.
É uma escrita poética ou bem impregnada de poesia aquela que se me revelou na sua leitura. Não da poesia da candura ou do amor, mas antes reflectindo as atrocidades da realidade de uma vida urbana de solidão, de degradação, de bestialidade, numa narrativa amargurada, pungente, de árdua leitura pela intensidade cortante que o jogo das palavras releva.
Passo um pequeno trecho:
(...) A morta está agora de costas voltadas. Com as nádegas sólidas junto das mãos do coveiro. Nesta posição, ele pode ver os dois cortes transversais, enormes, um de cada lado, através dos pulmões: a causa da sua morte. Delicadamente percorre cada milímetro do comprimento daquelas feridas com a ternura possível de cinco dedos encardidos. Depois, abraça-a, e preenche o espaço que as suas mãos disponibilizam para agarrar.
Senta-se no rebordo da cama e prepara-se para agir. Há algo naquele cenário que o incomoda, coisa mínima: um detalhe a precisar de reparação. Leva a mão esquerda a um dos bolsos das calças e retira um pequeno objecto metálico. Aproxima a boca daquele rosto de anjo desmilitarizado, sussurrando-lhe ao ouvido:
Posso? Estás tão fria!
Agarra uma das mãos da morta e descansa-a na palma da sua mão direita. Cuidadosamente, abre o pequeno corta-unhas - que sempre o acompanha - e estende-lhe os dedos azuis como um profissional.
Diz-lhe:
Sabes... Crescem depressa. Crescem mais depressa agora. (...)
Sandro William Junqueira
O Caderno do Algoz
Editorial Caminho, Lisboa 2009
Nota:
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