segunda-feira, fevereiro 13, 2012

Um poema a cada segunda.feira (LXV)



O Público divulgou, há alguns anos, uma série de antologias de poesia que encomendara a certas personalidades da vida portuguesa não diretamente relacionadas com a literatura.

É desse manancial que esta rubrica se irá sustentar por algum tempo, confinando-se as minhas escolhas às opções dessa personalidades e a poetas que viveram, ou ainda vivem, sob o bafo civilizacional do séc. XXI.

A primeira vaga proveio da safra de Mário Soares, a que se seguiram Miguel Veiga e Diogo Freitas do Amaral.
Prossigo, agora com Urbano Tavares Rodrigues.


  • NOTÍCIAS DO BLOQUEIO

Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
 o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e, enquanto a água e os víveres escasseiam,
aumenta a raiva
                          e a esperança reproduz-se.

Egito Gonçalves
Os poemas da minha vida
Urbano Tavares Rodrigues
Público, Lisboa 2005

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1 comentário:

hfm disse...

Desde os meus 16 anos este é um dos meus poemas preferidos. Obrigada por o teres trazido aqui!