quarta-feira, abril 30, 2008

Um Conto (XXIV)

Faz muito tempo que aqui não deixava um conto, nem sei quando voltarei a deixar outro, mas aqui fica, como num prolongamento das notas que venho escrevendo sobre a minha estadia na grande cidade.


  • Um olhar inovador e descomprometido

    Jonah hesitava.
    Mal sabia que a decisão que iria tomar alteraria toda a sua vida.
    Provavelmente serão assim todas as nossas decisões; as inúmeras decisões que temos de assumir, quase de minuto a minuto, ou até de segundo a segundo, nas ligeiras alterações do fluxo da nossa corrente de pensamento. Só validaremos, no entanto, as que nos parecerem mais significativas; as que o nosso julgamento vier a apreciar como tal, pela positiva ou pela negativa.

    Na sua frente erguia-se o enorme edifício onde se instala a Modern Tate Gallery.
    Jonah avançou.
    Impressionou-o a vastidão do espaço. Avistou os elevadores e aproximou-se. Aguardou frente a um deles e entrou junto de outros visitantes. Não premiu nenhum botão. Saiu quando lhe apeteceu e soube que se encontrava no 5º piso. Caminhou ao acaso.
    O seu olhar foi registando peças, de diferentes dimensões, construídas com materiais diversos, mas a que não conseguia atribuir significado ou utilidade. Passeou longamente, observando atento, de sala em sala, de corredor em corredor. A dado momento apercebeu-se de que as salas se repetiam e tentou procurar a saída. Caminhou por horas. A noite caía sobre a cidade, a grande cidade que avistava através dos vidros das amplas janelas.
    Subiu escadas, desceu escadas, cruzou salas e corredores e nem vivalma.
    Quando lhe pareceu não poder subir mais viu-se junto a um restaurante. Entrou na cozinha e não resistiu a comer o que avistou no frigorífico. Num compartimento que lhe pareceu ser o vestiário dos funcionários do restaurante e nas traseiras de uma fila de cacifos, acomodou batas e fardas e deitou-se, sobre elas adormecendo, exausto.

    Acordou era noite, de novo. Sem sono, percorreu todo o edifício. Numa das salas vazias, reservadas a exposições temporárias, Jonah foi montando a sua própria exposição, distribuindo a seu gosto uma escultura com duas ou três pinturas que julgava relacionar ou, numa parede, compondo quadros de diversos autores que lhe pareciam ter algo em comum.
    Oh! Como gostava de o fazer.

    O curador da galeria foi alertado para uma nova exposição que não constava nos catálogos, mas que estava a ganhar enorme sucesso entre os críticos e de que ele francamente não conseguia lembrar-se de ter apreciado ou autorizado.

                - «Será que a memória me falha?», perguntava-se.

    O sucesso ganhou lugar nas primeiras páginas dos jornais da especialidade e o curador via-se constrangido, com os críticos a referir-se ao seu olhar inovador e descomprometido.
    Outro caso o preocupava e decidiu ficar uma noite a pé, tentando averiguar do desaparecimento de comida, mudas de roupa e até da utilização abusiva da sua casa de banho privativa.

    Confrontaram-se no corredor: Jonah e um homem que se lhe apresentava como o curador daquele lugar.

                - «Mas quer ficar? Para sempre? Sente-se bem e é feliz? Não quer saber de mais nada? Prometa-me que este segredo fica entre nós e passe a usar este amplo gabinete, junto ao meu. Nomeio-o meu assistente.»

1 comentário:

hfm disse...

Do melhor que tenho lido.

Este merecia letra de imprensa.