terça-feira, fevereiro 03, 2009

Arqueologia das palavras

Ao remexer em velhas coisas, por um particular motivo que aqui não vem ao caso, vim a encontrar um velho livro de poemas que eu sabia ter guardado algures. O curioso é que tal aconteceu na sequência da vinda de Nuno Júdice a Silves para apresentar o seu último livro e acabo por dar de caras, em minha casa, com o seu primeiro livro.

Um espanto!

De um seu texto poético, um pouco longo para apresentar neste veículo de leituras apressadas, retirei um excerto, precisamente o mesmo que o autor ou o seu editor também escolheu para usar na contracapa.

  • A procura de evidência

    (.../...)

    Dediquei-me um dia a cuidar das aves doentes. Prendiam-se aos juncos, na lagoa, e a maré cheia apanhava-as indefesas. Arranjei-lhes gaiolas. Quando ficavam curadas, e batiam as asas em ânsias de atmosfera, eu cegava-as com espinhas de peixe. Deixavam de comer, depois. Morriam. Eu fazia almofadas com as penas.

    N. perguntou-me um dia se eu seria capaz de remorso. Não lhe respondi.

Nuno Júdice
A Noção de Poema
Publicações D. Quixote, Lisboa 1972

1 comentário:

hfm disse...

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice

Um abraço