quinta-feira, novembro 03, 2005

Um Conto (XVII)

  • O meu amigo Jojó

    O Jojó morava do outro lado da rua, numa casinha térrea de barras azuis na porta e nas janelas.
    Foi meu colega na pré-primária. Logo pela manhã descia um pouco a rua, colocava-se frente à minha porta e aguardava que eu descesse e o acompanhasse até à escola. Eu cumpria escrupulosamente essa rotina. Lembro-me de que uma vez tinha descido primeiro do que ele e fui esperá-lo. Ele não gostou que o tivesse feito. Chegou mesmo a dizer-me: - «Não é assim que se faz!».

    Seguíamos juntos. Raramente conversávamos. Ele nunca assumia a iniciativa e eu obtinha invariavelmente respostas assertivas, breves e secas. Mas sei que ele gostava de mim. Considerava-me o seu melhor amigo; o seu amigo de confiança. Eu também sentia muito carinho e respeito pelo Jojó.

    Na escola, refugiava-se a um canto e observava-nos, disfarçadamente, pois sabia que o seu olhar desencadeava respostas de alguma agressividade, com caretas, arremesso de objectos ou confrontação física.

    O Jojó era diferente dos outros.

    Como e quando teria ele descoberto essa diferença? Que conjecturas retirava das atitudes dos colegas?

    Na escola primária a situação agravou-se, nomeadamente perante os colegas mais velhos, a quem eu próprio não me atrevia a opor-me ou a chamar a atenção. Também passou a ficar na escola, por um tempo suplementar, e perdeu a minha companhia no regresso a casa.
    Quando passei ao liceu, ele ainda se mantinha na outra escola. Mais tarde, na adolescência, quando se aproximava de mim, o que só acontecia se eu estivesse sozinho, passou a perguntar-me o nome desta ou daqueloutra das minhas colegas e um dia mostrou-me, às escondidas, uma carta que tinha escrito para a Margarida. Na longa folha de papel, de linhas azuis, além do nome dela - Margarida - tinha preenchido todo a carta com a mesma frase, sempre repetida - Eu gosto de ti.

    Com o passar dos anos e quando, de férias, regressava a casa, observava que o Jojó não era já o segregado ou o alvo da agressividade gratuita dos outros; antes lhes era absolutamente indiferente.

    Vi-o ontem, na Feira. Olhou-me quando o cumprimentei, mas nos seus olhos só vi ausência. À indiferença dos outros o Jojó foi ficando indiferente aos outros e nem já o calor da ira, da reacção à maldade, o habita. Ninguém sequer já proclama quando por ele passa: - «Olha o mongolóide!»
    Até me apeteceu dizê-lo, de raiva, a ver se reagia, se reactivava de dentro daquele invólucro, pelo menos um resto do Jojó que eu conheci.

    Não o fiz. Sei, cá no fundo, que nessa indiferença viverá o resto dos seus dias.


4 comentários:

hfm disse...

Chega a doer, António, de tão verdadeiro neste mundo onde não se acarinham as diferenças.

Santos Passos disse...

Bom demais.
Abraço, António

fotArte disse...

Assim é que é!

Anónimo disse...

No minimo espectacular!!! mutio bom msm...