sexta-feira, janeiro 12, 2007

GIOTTO

A leitura de Poemário, a agenda que me foi oferecida e a que já aqui me referi, sugeriu-me o post de hoje, a partir do poema que lá se apresenta na data de ontem, quinta-feira.


  • A Lição de Giotto

    dizem: antes dele a pintura afundava-se
    naquilo que alguns pintaram para seduzir
    o olhar dos ignorantes e não
    o subtil prazer do espírito

    possuía um excepcional sentido do espaço e
    do volume foi reformador da pintura florentina
    reduziu tudo ao essencial reduzindo personagens
    acessórios detalhes e pela amplitude
    da composição arquitectural atingiu grandeza
    invejada e sem igual

    foi ele ainda
    o primeiro a enclausurar a alma
    no interior de corpos limitados e sólidos
    que nos convidam à reflexão sobre a natureza humana
    e sobre as coisas diáfanas do coração


Al Berto
in Poemário
Assírio & Alvim, Lisboa 2006


Giotto é um dos tais homens com capacidade de ver para além do seu tempo, como há alguns dias eu dizia a propósito do Padre António Vieira.



O que mais me impressiona na representação deste episódio bíblico, Lázaro regressado da morte, é a atitude dos dois homens, no canto inferior direito, alheios ao fenómeno, concentrados no seu trabalho, indiferentes perante o que ali sucede.
Na pintura do séc. XIV, de cariz religioso, recheada de normas rigorosas e de alguma intransigência, esta atitude de Giotto revela alguma rebeldia e muita coragem.
Diz-se que Giotto foi o introdutor da perspectiva na pintura e Al Berto refere-se-lhe como (... o primeiro a enclausurar a alma...). Também tudo isso sou capaz de vislumbrar na sua arte, assim como reconheço muita plausibilidade na tese de que Giotto e os pintores que se lhe seguiram tiveram acesso a instrumentos ópticos, que lhes permitiram projectar imagens, avançando assim para a perspectiva na pintura.
No artigo de uma revista que refere essa tese e cujo link aqui faculto, também se menciona o anterior conhecimento e o uso do princípio da câmara obscura, fenómeno descrito por Mo Ti, na China, no séc. V a.C. ou por Aristóteles no séc. IV a.C. ou pelo árabe Alhazen, de Basora, no séc. X da nossa era.

Independentemente do hiato de conhecimento que a civilização árabe veio a repor, das razões apresentadas ou das características técnicas e artísticas que a História da Arte se encarrega de estudar e divulgar, fosse o que fosse que Giotto conhecesse na sua formação como pintor, aquilo que de pessoal ele introduz na pintura é a forma como vê o mundo, e isso é próprio de um homem com capacidade para ver mais longe do que os outros; a capacidade de um pensador e de um temerário.

4 comentários:

Anónimo disse...

Ainda tive o privilégio de poder estar sentada o tempo que me apeteceu (hoje limitado a 10m) na Capela dos Scrovegni (?) a contemplar aqueles frescos de cor, transparências e alma. Não podia concordar mais com Al Berto para lá da poesis das suas palavras.

Torquato da Luz disse...

Excelente post, como é habitual.
Aquele abraço.

Anónimo disse...

Numa antiga aldeia do Norte de Portugal, daquelas longínquas, ignoradas, que as há, lindíssimas, existia um antigo Pároco que, diariamente, celebrava a sua Missa.
Tinha como velho ajudante um sacristão, homem simples, que dava pelo nome de Só-Berto, sem que ninguém desse nada por ele.
Um dia, chegada a Epístola, o Berto, que mantinha a deliciosa pronúncia do norte, começou a sua leitura, de modo algo indiferente, talvez devido ao hábito da profissão:
- ... e então Jejus dixe: "levanta-te, Lájaro, e anda...", e Lájaro andeu!...
Diz o Padre: "Andou, burro!"
E o sacristão: "Ah, poije, andou burro, mas depois curou-xe!"

... E o milagre deu-se, na mesma...

O simples, ignorante, também temente, temerário e pensador (ninguém no fundo o conhecia, e até talvez ele próprio mal se conhecesse...) e, à sua maneira, visionário sacristão, soube tirar proveito da situação, interpretá-la e aproveitá-la a seu jeito...

Será que as duas figuras deste quadro fazem o seu trabalho de forma tão indiferente?
Será que, apesar do milagre, eles têm que continuá-lo?
Será falta de deslumbramento perante o milagre do Mestre?
Será que acreditam em milagres?
Não é que eu acredite em milagres... mas que por vezes os há... há!

Anónimo disse...

Giotto e Alberto nasceram e morreram a cerca de sete séculos de distância. Mas vivem ainda através das respectivas obras.
O Pároco e Só-Berto vivem no imaginário popular e foram recriados por terem a ver com o tema e como introdução às questões postas.
Estas resultam do uso do princípio da câmara obscura que, vindo de tão longe, perpassou por todos nós (os que vivemos de alma enclausurada) e tende a eternizar-se.