Silves, anos 30
Corria o já distante ano de 1924. Em luta pela melhoria das suas condições de vida, a greve dos corticeiros prolongava-se no tempo. Sem salário, começa a estar em causa a satisfação das necessidades básicas. A fome atinge as famílias operárias e a solidariedade social organiza-se espontaneamente tentando suprir as necessidades alimentares, protegendo em especial as crianças e a sua saúde. Por todo o Algarve, do Sotavento ao Barlavento, há quem se proponha receber os filhos dos corticeiros de Silves. Centenas de crianças são deslocadas e acolhidas junto de famílias solidárias, de Vila Real de Santo António a Lagos.
Terminada a greve organizou-se o regresso das crianças e fixou-se a sua recepção num domingo, 15 dias depois de retomada a normalidade.
Por volta das oito da manhã, aguardando a chegada do comboio proveniente de Lagos, no largo da estação dos caminhos de ferro que serve Silves, a cerca de dois quilómetros da cidade, as famílias e alguns amigos aguardavam a chegada das crianças. O comboio da zona do Sotavento, onde se acolhera a maioria das crianças, só chegaria lá para o meio-dia. Resolveram descer à cidade.
Ao longo do percurso, mais gente se foi juntando. À entrada na cidade já o grupo se apresentava como um cortejo alegre e barulhento, com vivas e cantos que expressavam a alegria do reencontro das famílias e que inundavam de emoção todos os que vinham às janelas para ver o que se passava e os outros que se animavam a participar na recepção.
José dos Reis Sequeira, operário corticeiro e militante anarco-sindicalista, que viveu o acontecimento, no seu livro Relembrando e Comentando, numa edição de "A Regra do Jogo", 1978, descreve assim os acontecimentos que se seguiram:
" Os industriais e mais senhores ricos da terra não gostaram do acontecido. Sentiram-se comprometidos por terem dado ocasião a que isto viesse a dar-se. E calcularam que à chegada do outro comboio seria pior, já porque a hora era outra e também porque o número de crianças a chegar do lado do Sotavento era muito maior. Temendo isso decidiram pedir às autoridades para impedir o cortejo. Isto é o que se supõe.
De todas as zonas da cidade se encaminhava gente para a estação de caminho de ferro. O comboio era um pouco depois do meio-dia mas chegou um pouco atrasado.
Eu, de manhã, não tinha participado no cortejo mas agora iam chegar as minhas irmãs, não podia faltar. O largo fronteiriço à estação transbordava de gente. A recepção não é possível descrever: risos, choros de alegria, chamamentos, gritaria descontrolada e vivas de entusiasmo, tudo num ruído amalgamado e ensurdecedor.
Depois da partida do comboio começou a marcha a caminho da cidade.
A estrada depois de descrever uma curva corta um cerro pelo meio da encosta, em sentido longitudinal. Pela nossa direita o cerro sobe até ao cume. Pela esquerda, um muro de pouco mais de 50 cm de alto, defende a estrada da vertente, bastante declivosa, que desce até às hortas e ao rio.
O cortejo era maciço. Em Silves, eu, nunca vi tanta gente junta. A primeira parte do percurso fez-se numa animação incontida e transbordante; mas quando a cabeça do cortejo dobrou a curva, começou-se a divisar o aparato bélico das forças da guarda republicana, distribuídas estrategicamente: infantaria à direita, na parte superior da encosta de armas aperradas, em linha de atiradores; ao fundo a cavalaria barrava a passagem na estrada. Restava-nos a vertente da esquerda, o desfiladeiro defendido pelo muro, mas possível de saltar por ser baixo.
A notícia correu célere até à cauda. Um aviso circulou: «mulheres e crianças para a frente!» Isto, na ideia que os mercenários teriam um pouco de respeito pelos inocentes. Terrível ilusão!
A movimentação fez-se mesmo em marcha. E um silêncio temeroso e de expectativa tomou o lugar da alegria esfusiante de até então. A marcha continuou. Nisto, o comandante da força desceu à estrada e ordenou dispersão imediata. Alguém na frente objectou que não havia outro caminho e que se passaria calado. A marcha continuou, convencidos que calados, não prejudicariam ninguém. Mas o tenente sobe para junto da força e ordena fogo. A primeira descarga foi cerrada e a fuzilaria continuou um pouco desencontradamente. Ao mesmo tempo avança a cavalaria em carga brutal sem respeito pelas mulheres e crianças.
Faltam-me recursos para poder descrever o pânico causado por esta inqualificável patifaria. Foi simplesmente horrível. Os que não foram atingidos pelas balas, pelas patas dos cavalos, ou pelas espadeiradas, rolavam pela vertente da esquerda depois de saltar o muro. A confusão era enorme; gritos de dor e aflição; crianças que choravam aleijadas e perdidas da família. Os que não caíram debaixo das patas dos cavalos, caíram desequilibrados na íngreme encosta e raras foram as pessoas que não se feriram duma ou doutra maneira.
Das balas houve um morto e diversos feridos de mais ou menos gravidade que foram hospitalizados."
José dos Reis Sequeira continua a descrever "o alvoroço e o espanto" que dominou a cidade. No dia seguinte, com o funeral da vítima marcado para muito cedo, a população assistiu de novo à barragem da guarda, impondo que o funeral se realizasse sem acompanhamento. Descreve ainda os protestos que se seguiram, as prisões que se sucederam, a saída dos presos sob fiança, a aguardar julgamento e finalmente a audiência em tribunal, com a defesa do advogado Campos Lima, do Conselho Jurídico da Confederação Geral do Trabalho (CGT), e a absolvição dos que a GNR tinha aprisionado.
12 comentários:
Obrigado, por nos dares a conhecer este episódio alegre e triste (que confusão de sentimentos) da nossa história local. Hoje sinto-me mais rico por este apontamento e pela do Cágado.
É por estas pequenas histórias que se constrói a cultura de um povo.
Quem me dera poder saber mais.
Conto contigo.
Obrigado.
Olhe sr. Tóino Baeta acabi agora méme de ler a su descrição deste dia 22 e é que gosti deveras, pôs é cá nã sabia dessa greve dos operares corticeiros e da volta das crienças de combóio.
É bem bom aprenderesse qalquer coiseca com quem sabe...
É cá sou o Campaniço Monsquêro e enteresso-me muto por cortiça e agora até tenho cá umas sobrêrecas pequeneças, qé cá méme samii e só ande dar alguma corticeca lá pó tempe dos més besnetes, más é nã memporta, o qé quere e a serra recuperada e com pouca calitraja, queles só sabem é sugar a nossa aguinha toda e erdem muto qondo há os encendios.
Olhe inda le digue que goste munto da su terra, qué munto calminha e com recantos e escaidinhas munto ingraçadas.
Vou lá passiar às vezes, ó Castelo e à Fábrica do Englês ós espetacles eo museu da tal cortiça.
Desculpe-me dé tar a encomodá-lo e que Dés le dê saúde e sorte mé amigue.
Carlos
Também formei muito da minha consciência com estas histórias de Silves, no velho "Caixão à Cova", do falecido pai do nosso amigo Edmundo, contadas pelos mais velhos, entre dentes, quando havia a certeza de que se estava entre gente de confiança.
Um abraço.
Caro Campaniço
Obrigado pela visita e bom esforço com essas sobreiras, que bem precisados estamos.
E fique sabendo que não incomoda nada. É um prazer!
Grande lição!Obr e bfs
Pedro
Pedro
Um abraço.
Já de regresso foi bom reencontrar as tuas palavras sempre precisas, sempre necessárias. Um abraço
Também foi bom saber-te de visita aqui, logo assim, à chegada.
Obrigado por transmitires às novas gerações este episódio da luta dos corticeiros de Silves onde o meu avô foi espadeirado pelo GNR, agressão presenciada pelo meu meu pai, ainda adolescente, com 14 anos. Foi factor determinante para a sua tomada de consciência política. A partir daí o operariado de Silves conscensiou-se de que nunca mais saíria à rua para manifestações só com um lenço na algibeira.Isto explica, em parte, porque no 18Jan34 os corticeiros estavam prevenidos para responderem à violência da CNR por efeito da greve convocada contra a fascização dos sindicatos.
Edmundo
Obrigado, também, pelo teu testemunho.
Comovente episodio da nossa história algavia que, confesso, não conhecia. Obrigado António.
Um abraço, Dario.
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