sexta-feira, julho 15, 2005

Um Conto (X)

  • Piano Man

    Tinha passado toda a noite a estudar aquela pauta. Repetia e tornava a repetir as passagens mais difíceis, tentando libertar-me das exigências técnicas e abraçar definitivamente o tom interpretativo que pretendia conferir. Aproximava-se a data do concerto.
    Exausto, reclinei-me sobre o piano.

    Estava uma manhã fria, húmida. Passeava na praia deserta quando fui abordado por alguns homens que se me dirigiam numa linguagem estranha. Inquiriam-me. Agarravam-me.
    Arrastaram-me para uma viatura e conduziram-me para uma casa onde, num quarto de paredes brancas, me deitaram num leito de ferro, também pintado de branco.
    Sujeitaram-me a recolhas de sangue e mucos. Observaram minuciosamente todo o meu corpo com uma intenção que me parecia criteriosa, mas cuja finalidade eu não entendia. Parecia que me receavam, como se fosse portador de algum mal.

    Deram-me papel e lápis. Desenhei.

    Mudaram-me para uma sala maior, onde algumas pessoas pareciam aguardar-me. Num ponto mais elevado da sala havia um piano de concerto, como o meu. Puseram-me ao piano e afastaram-se.
    Toquei durante horas.
    Deixaram-me depois, só, num belo e extenso jardim.

    Contemplando o pôr-do-sol, que tudo pintava de vermelho, senti que regressava ao meu próprio piano.
    E então toquei. Toquei... até que, exausto, adormeci.


6 comentários:

hfm disse...

Mais um, António... e de uma enorme subtileza.

Torquato da Luz disse...

Como sempre, muito imaginativo e bem escrito. Um abraço e bom fim-de-semana!

Anónimo disse...

Sem desprimor, gostei mais do conto IX, de que fiz, aliás, um breve comentário, embora este, o X, feito de pinceladas breves, correspondentes a espaços e tempos diferentes, tenha uma técnica interessante, a de um movimento circular, abrindo com o piano e se fechando sobre o mesmo piano. fcr.

Futuro Ex-Gordo disse...

Faz lembrar a história do pianista misterioso de há umas semanas... ou meses, já não me lembro.
Gostei, amigo!

Unknown disse...

Obrigado pelos comentários, meus amigos.
Adriano, o tal pianista é o modelo inspirador da minha ficção, obviamente.

Anónimo disse...

Muito bom msm...