quarta-feira, junho 14, 2006

Um Conto (XXII)

  • Quando o nosso sonho pode não ser nosso

    Hoje, com 28 anos, Filipe, sentado à secretária do seu escritório, reflecte sobre a sua vida.

    Mal cumprira os seis anos de idade e já seguia, pela mão de seu pai, até às "escolinhas" do clube de futebol lá da terra. E o pai ali ficava, deslumbrado, a vê-lo jogar, agitando braços e palavras de ordem. No final do treino, Filipe aguardava que o pai terminasse a conversa com o seu treinador. Com uma das mãos acariciando a sua nuca e a outra a gesticular insistentemente, quase em risco de socar a cara do treinador, tal o calor que o pai emprestava à conversa, discutiam coisas que ele não entendia, embora soubesse, isso sim, que falavam de si.
    O seu pai sabia de tudo. Era o maior!
    Já da outra escola, quem se ocupava era a sua mãe, verificando os trabalhos, esclarecendo as dúvidas, preparando-lhe a roupa e o lanche.
    Aos doze anos, a cada sábado, o pai assistia aos jogos. Filipe tinha sempre lugar na equipa. Na outra escola também tudo corria de feição.
    Aos 18 anos o futebol já ocupava grande parte da sua vida, com responsabilidades na equipa principal, agora acrescentadas com a convocatória para a selecção regional. Mal tinha tempo para se dedicar à Literatura, à História e à Física, as áreas da sua preferência, as que lhe permitiam entender melhor o mundo e os homens. Fazia-o a maioria das vezes às escondidas, não fosse o pai ralhar-lhe por se deitar tarde e não descansar como deveria. No ano seguinte deixou mesmo os estudos, ao ingressar numa equipa do escalão principal. Era sempre ele o jogador escolhido para as entrevistas e reportagens; exprimia-se com mais facilidade que os outros.
    Fora o pai quem o levara à cidade grande, a treinar naquela equipa, e agora repartia-se em esforços e contactos para o levar para um dos três maiores.
    Não pararam naquele verão. Assim fizeram no verão seguinte e no outro, até que o convidaram a ingressar numa das grandes equipas do país.
    No banco, a maior parte das vezes, acabou por ser emprestado à equipa donde saíra.
    Acalentando o sonho de Filipe, o pai, todos os anos, esforçava-se por um melhor contrato. Passou a dedicar-se exclusivamente à sua promoção, abandonando a empresa onde trabalhava.
    Chegou então um dia em que, depois de muito pensar, desalentado com uma carreira que se arrastava, decidiu deixar o futebol. Contra a vontade de seu pai, que acabou finalmente por ceder, pegou nas suas economias e montou uma empresa de comércio e serviços relacionada com a prática desportiva.
    Agora lê à vontade, pensa mesmo voltar a estudar e ainda joga futebol, mas é por desporto, por prazer, com os amigos.

    Hoje, à sua secretária, reflectindo sobre a sua vida, questiona-se, sem saber, se o sonho de ser jogador de futebol fora mesmo um sonho seu ou um anseio do seu pai.


14 comentários:

Torquato da Luz disse...

Muito bem escrito, como sempre, este desenvolvimento do microconto de sexta-feira passada.
Um abraço, Toy.

Unknown disse...

Obrigado por comentares.
Outro abraço.

RS disse...

Caro António,
Os meus pais queriam que eu fosse médico, mas não era o meu sonho. Esse, o de voar, foi desfeito, mas das suas cinzas renasceu, transfigurado. E hoje voo, finalmente, nas páginas que escrevo e nas telas que pinto.
Afinal, o sonho era só um pouco diverso do que imaginava, mas é ele. Sorte minha? Talvez. Mas realizar um sonho não é tarefa fácil ou garantia de felicidade constante.

Um abraço,
RS

Unknown disse...

Obrigado pelo teu testemunho.
Um abraço, Rui.

Asulado disse...

Caro António
E se o rapaz fizesse uma excelente época num dos grandes, assinasse contrato com um clube estrangeiro e se visse numa limusine ao lado da Merche Romero, será que também lhe surgiria a dúvida?
Um abraço.

Unknown disse...

O problema é que esse sonho só se realiza para muuuuuito poucos e é raro o pai que não sonha esse sonho para o seu filho.

MaD disse...

Nestas circunstâncias, mesmo passando a ser nosso, o sonho foi-nos induzido e é, seguramente, desajustado.
Ajustado à realidade presente é, sim, este conto que li com muito prazer.
Cumprimentos.

Unknown disse...

Obrigado, caro vizinho.

Carla disse...

Beijos e bom feriado

Anónimo disse...

Grande conto, Toy.
Dá muito que reflectir.
Um abraço feiranovense
Tozé

Unknown disse...

Outro abraço para ti e família.
Agosto aproxima-se.

Anónimo disse...

Ao ler isto...parece k m conhece...k conta a minha historia!totalmente identica!lindo msm!descubri aki um grande blog!abraço

June disse...

António,
Adorei o teu blog. Uma surpresa muito agradável. Escreves maravilhosamente, tens uns posts incríveis.

Um grande beijinho.

Encontramo-nos no sítio do costume.

Unknown disse...

Um grande beijinho também para ti, amiga de outro mundo.