quarta-feira, outubro 12, 2005

Certamente uma manhã chuvosa

Sim. Foi certamente uma manhã chuvosa que inspirou Nuno Júdice a escrever...

  • Cena de Província

    No café de aldeia, a mulher nova espera
    que alguém chegue para tomar o café com ela. Não pediu
    nada. Olha para fora, onde só as árvores se mexem
    com o vento, e é como se não olhasse para sítio
    nenhum. Na sua mesa de café de aldeia, sentada com o jornal
    de província à frente, de rosto fechado para todos
    os que estão no café - e para mim, ao balcão, olhando
    para ela enquanto acabo o café - a mulher
    nova espera que um deus chegue para tomar
    café com ela. É verdade que uma beleza estranha envolve
    o seu corpo; que as mãos têm as linhas puras de quem
    não precisa de as gastar em trabalhos e estações; e que
    o seu rosto traz a luz obscura de quem sabe que tem todos
    os desafios do amor para vencer. Hesito em pedir-lhe o
    jornal, pousar a minha chávena de café na mesa ao lado,
    perguntar-lhe como se chama; e contar-lhe algumas histórias
    desta aldeia, para que ela se vá embora, esquecendo
    esse deus que viria tomar café com ela. Mas
    a mulher nova continua a olhar para a rua, onde começou a
    chover. E quando chove, num largo deserto de aldeia,
    o ruído doce das gotas nos vidros até faz esquecer o bater
    das bolas, no bilhar ao lado, e a melancolia que escorre
    dos olhos da mulher nova que insiste em não abrir o jornal
    de província, em esquecer-se do encontro que está para
    não acontecer, e em olhar para mim, que acabei de pagar
    o café e saio, para apanhar a chuva que começa
    a cair com mais força no largo da aldeia.

Nuno Júdice
Teoria Geral do Sentimento
Poesia Reunida (1967 - 2000)
Publicações Dom Quixote, Lisboa 2000

2 comentários:

hfm disse...

Foi bom encontrar aqui Nuno Júdice.

Anónimo disse...

Que chuva boa, num largo de aldeia... E faz tão bem : a vida ressurge.