segunda-feira, setembro 16, 2013

Alcantarilha - memórias de infância (V)






O Adro da Igreja era o lugar de todos os acontecimentos.

Durante a Feira anual, a 15 de novembro, era o sítio de implantação do carrossel; até lá esteve o famoso carrossel 8, que não andava às voltas fechadas, mas aos oitos, pois funcionava em dois níveis, um mais elevado do que o outro e às curvas, como um 8.
 
 
 
Aqui está o carrossel 8,
em fotografia só para ilustrar a ideia,
batida na Feira de Silves de 2006.
(ao clicar amplia a foto)
 
 
 
 
 
Também era o lugar de projeção de cinema, nessa parede branca, à direita, na fotografia  de cima.
 
Recordo-me de um homem que instalava pelo final da tarde a máquina de projeção e, à noite, cada um com sua cadeirinha de tabua, ou banquinho de madeira com buraquinho no tampo para meter o dedo e transportar, lá nos sentávamos para ver o cinema ambulante.
 
Recordo particularmente um filme, a preto e branco, talvez até em sépia, (ainda não havia cor nessa época), onde havia dois irmãos gémeos, um deles encerrado numa sala por esquizofrenia (penso eu, hoje), mas cuja porta de acesso se abria se o outro irmão, ao tocar piano, premisse a última tecla branca à esquerda do teclado. Já não recordo o que faria o irmão esquizofrénico se a porta se abrisse, mas o filme criava um clima de tensão enorme, pois enquanto o pianista gémeo tocava uma música, provavelmente em tom menor, pois é um tom que gera uma impressão de tipo angustiante, os dedos percorriam o teclado e aproximavam-se da última tecla, mas sem lhe tocar, e o meu coração batia acelerado de cada vez que os dedos se aproximavam da tecla que abriria o acesso ao gémeo louco e assassino, creio eu.
 
Mas o adro era também o lugar do berlinde e do pião, em devida época, e pião que perdesse o jogo era mutilado, partindo-se-lhe a "segrelha" (creio que o que queríamos dizer era segurelha) e atirado pelos buracos da porta mal conservada para dentro da "carneira", como chamávamos à Capela dos Ossos, ao fundo, à esquerda, na foto de cima.
 
O adro era também o local onde morava, e ainda mora, o meu amigo Zezinho. Ao fundo, à direita, ficava  a porta das traseiras, com acesso ao quintal, por onde entrávamos.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Mas este largo agora, nesta fotografia, onde antes estava o prédio do Professor Verdasca, que hoje parece menos largo do que era, também cumpria um papel semelhante ao do adro da igreja e também para aqui vinha a aldeia em peso, com as tais cadeirinhas de tabua e os banquinhos de madeira com buraco no topo, não para ver cinema, pois não havia parede branca, mas para apreciar os grupos ambulantes de saltimbancos, com artes acrobáticas e ilusionismo e habilidades de animais. Lembro-me particularmente de uma cabra que se equilibrava no gargalo de uma dessas garrafas de litro, em vidro.
 
E às sextas ao cair da noite, onde tínhamos uma liberdade maior para sair, pois não havia responsabilidades com a escola ao sábado, a maior fixação era o matadouro do Sr. Pedrosa, nesta foto com essa porta e essa janela (a porta, no tempo que relato, era velha e em madeira), hoje em dia mesmo ao lado do restaurante Mariazinha.
 
 
 
Aí o jogo consistia em agarrar a ovelha, o carneiro ou a cabra que o homem responsável pelo matadouro indicasse e levar o animal para junto dele.
 
Depois era a emoção  desencadeada pela surpresa e pelo mistério da morte: o animal preso entre as pernas do homem, a choupa, pequena faca recurvada, em bico, muito afiada, que ele encostava a um ponto preciso que tateava previamente com os dedos, e... num só gesto de pressão, no "nó vital", como lhe chamávamos, o animal tombava, inerte.
 
 
P.S.
O meu irmão Zé esteve a ler este episódio de memórias e diz-me que talvez não fosse o carrossel 8, mas sim o carrossel Flecha, pois o carrossel 8 dificilmente caberia no Adro. Admito o erro de memória, embora para mim o carrossel Flecha seja  o normal, o sempre presente, e não o especial, como seria o 8.  Fica a sugestão, mas quase o vejo a rodar nesse lugar quando fecho os olhos. Alguém se lembra, por aí?!

Também me emenda o episódio do matadouro, dizendo que a circunstância de poder ficar até mais tarde, porque no outro dia não havia escola, não tem razão de ser, pois havia escola ao sábado. E recorda que uma vez, ao final da tarde, a Sra. Joaquina nos foi chamar ao matadouro, embora sem êxito, e depois ter aparecido o meu pai, com mais êxito. :)
Concordo que assim tenha sido.


(Tem continuação)


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