É tempo de um novo poema de origem luso-árabe. Hoje é a vez do mais brilhante poeta silvense, Ibn 'Ammar e, a meu ver, do seu mais belo poema:
mais uma rodada, copeiro,
que já se ergue a aragem da manhã
e a estrela de alva
desviou a rota da noite viajeira.
A alvorada trouxe-nos brancura de cânfora
assim que a noite reclamou seu negro âmbar.
o jardim parece uma donzela vestida com túnica
bordada a flores e adornada com pedras de orvalho
ou então, jovem ruborizado de pudor de rosas
alentado com a sombra do mirto.
e esse jardim,
onde o rio lembra branca mão
pousada sobre um tecido verde,
mostra-se agitado pela brisa:
dir-se-ia, meu Rei,
a tua espada desbaratando exércitos.
meu senhor!
verde brilhante são os favores da tua mão
quando os céus se turvam de cinzento.
teu dom é sempre generoso:
se virgens dás têm seios opulentos
se cavalos são de nobre raça
se alfanges têm pedras preciosas.
meu Rei!
quando os demais reis se dessedentam
esperam que ergas primeiro a tua taça.
és mais refrescante para os corações
que o orvalho formado gota a gota
e mais agradável para os olhos
que o doce peso do sono.
faz faiscar a chispa da tua glória
que não deixa nunca o fragor da lide
senão para se abeirar do lume
que mandaste acender para os teus hóspedes.
Rei,
esplêndido no talhe e no espírito,
como o jardim, belo de perto ou à distância.
quando a teu lado me é dado
o rio celestial que mana do teu ser
é bem certo que estou no Paraíso.
fizeste pender da tua lança
as cabeças dos reis teus inimigos
só porque o ramo agrada
na impaciência da flor?
tingiste a tua cota com sangue de heróis
só porque a formosa se enfeita de vermelho?
a espada, se a tua mão a empunha,
dá lugar a súplicas mais eloquentes
que as do melhor dos tribunos, quando fala.
este poema é para ti.
como um jardim que a brisa visitou
e no qual repousou o orvalho da noite
até que o ataviou de flores.
do teu nome fiz uma veste de ouro.
em teu louvor derramei o melhor almíscar.
quem me suplantará? se o teu amparo é sândalo
eu o queimei no fogo do meu génio,
estavam as brasas ainda a arder.
O meu coração é árabe
Assírio & Alvim, Lisboa, 1998
2 comentários:
Bom dia, António.
Poema singular, este.
António, espero nunca deixar passar em claro poemas deste calibre. Obrigada por os colocares aqui. Abraços
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