Este post, o primeiro deste novo ano de 2005, é dos que classificaria como Local e Blogal:
(...) A céu aberto, com a pedra de amolar girando, espirrando mil centelhas de um fogo inicial, as mãos dos trabalhadores desta arte antiquíssima afiavam as facas de rebanear que lhes serviam para produzir cortes límpidos no interior das pranchas de cortiça - pranchas, como grandes telhas de casca de sobreiro, barcos de brincar, talvez, restos de animais sem medida e sem nome. Eram fatias longilíneas depois, essas peças em monte, à espera de outras lâminas que as dividissem em cubos toscos ou as transformassem em cilindros e aparas leves. Artesãos quadradores, escolhedores manuais de rolha, gestos secos, instrumentos de corte, agulhas grossas e fios de sisal, letras azuis, enfim, e o bojo tenso dos sacos de serrapilheira. Um cheiro doce no ar, o pó, o fumo das marcas incandescentes, os batimentos certos, as máquinas arcaicas chiando por cada talhe redondo, com as suas artroses no ferro a mover-se sob o pingo-pingo do óleo que as lubrificava a partir de latas em funil. O tempo medido assim, gota a gota, ou reconvertido em ritmo pelo jogo das mãos puxando e empurrando o aço das garlopas, respiração a espaços, cubo após cubo, rolha após rolha. (...)
Local, porque o trecho que irei transcrever tem o cheiro, o palpitar, a vivência de quem conhece e guarda memórias desta minha terra e surgiu do aparo cor de bronze ou da "remington" de um seu filho.
Blogal (glosando Global), porque o faço num blog, mas sobretudo porque se trata de uma escrita poética que transcende o mero interesse regional.
Foto de Margarida Soares Ramos
Rocha de Sousa
(Professor/Pintor da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa)
A Casa Revisitada
4 comentários:
Bom Ano, António!
Saudações pelo regresso! O abraço de sempre.
:-) Benvindo a casa, e happy new year
Muito bonito este trecho de Rocha de Sousa! E muito correcto, do ponto de vista técnico, no que concerne ao trabalho dos corticeiros. Fiquei com vontade de ler "A Casa Revisitada"...
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