quinta-feira, outubro 02, 2003

A anedota "política" e sua função social

Há um novo "môce" de Silves nos blogs, que hoje post(ou) em O cão do Guedes a propósito de "Às segundas ao sol", um filme de Fernando Léon de Aranoa. Refere um diálogo entre dois russos, depois da queda do Muro de Berlim, relatado por uma das personagens do filme (um desempregado do norte de Espanha, de nacionalidade russa):


  • - Sabes o que me entristece, é saber que tudo aquilo que eles falavam sobre o comunismo era mentira.

    - A mim, sabes o que me entristece mais, é saber que tudo aquilo que eles falavam do capitalismo é verdade.

Não vi o filme, desconheço-lhe o contexto e o que vou dizer não tem nada a ver com o "môce" que escreve n'O cão do Guedes, (sei que ele sabe do efeito maniqueísta do "tudo aquilo" e do acriticismo típico de "uma no cravo, outra na ferradura"). O que vou dizer não tem mesmo sequer nada a ver com a "anedota" em causa, mas sim com o que ela me suscitou.
Há um indistinto ELES que permite diversas leituras, mas mesmo que não houvesse, haveria sempre leituras diversas; nós lemos com a nossa cabeça e não com os nossos olhos e, felizmente, cada um de nós tem uma cabeça que é só dele.
As anedotas de coloração política, de que não gosto, fazem sempre lembrar-me as piadas "políticas" das Revistas ao tempo do Salazar, que ainda hoje se utilizam nesses circuitos do entretenimento, mormente nas estações de rádio e de televisão, por vezes ainda com alguns dos velhos actores ou dos seus herdeiros. O seu efeito social, embora de elevada repercussão, é praticamente nulo, embora tenha permitido a muitos desses actores e autores se arrogarem, depois, como grandes lutadores pela liberdade (se bem que alguns tenham sofrido na pele pelas suas tomadas de posição políticas).

Se a crítica era dirigida à sovinice salazarista, o público ria, é verdade, mas lá no fundo acreditava nos valores da poupança, da contenção, da defesa do produto nacional, tão vendidos pela propaganda do tempo e que se escutam ainda hoje, amiúde, mesmo por gerações posteriores ao tempo da ditadura.
Se a piada era dirigida às perseguições, às prisões políticas, o público ria, muitas vezes sem entender o arrojo da denúncia, porque lá no fundo, o Salazar era o pai, o dirigente diligente e sacrificado capaz de "...uns açoites dados a tempo...", concepção que ainda hoje ouvimos com demasiada frequência.
Mesmo o arrojo e denúncia de muitos dos actores e autores contava já com este efeito de travagem provocado pelo "senso comum", exactamente porque cada um tem a sua cabeça, diferente, mas há muitas cabeças mais iguais do que as outras.

Sem contexto, sem vivências, a informação, só por si, não produz conhecimento actuante, ou estaríamos bem "fritos" com tudo o que por aí se promove em jornais, rádios e televisões.


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