Numa visita a Silves, o autor de Um pouco mais de Sul trouxe consigo, para me emprestar, O Estado dos Campos, de Nuno Júdice, edição da Dom Quixote, 2003. Ontem, Domingo, iniciei, deliciado, a sua leitura. Creio que não há melhor maneira de vos revelar este belo livro do que dá-lo a conhecer a partir de um dos seus poemas. Qual? perguntava-me.
Decidi começar pelo princípio:
GÉNESIS
No princípio era o verbo, e eu traduzia-o
em palavras com um sentido fundo como o poço
de onde as mulheres puxavam os baldes de água,
à tarde, para refrescar o chão de agosto. Nas
cordas de roupa do quintal, eu estendia as palavras
para as secar: e via o sol atravessá-las até ao osso,
dissecando o seu corpo mais vago - as vogais fechadas
do fim, ou a enunciação de um infinito
até ao limite do verbo.
No princípio também eram as coisas: umas
sobre as outras, no alinhamento curvo do destino,
como se não estivessem para cair nessa trepidação
de rimas que um fim de verso pode trazer. Então,
levantava-as do chão onde se tinham partido em pedaços,
as coisas brancas da lua e as coisas vermelhas do sol, e
colava-as na parede, vendo o muro subir
até ao tecto celeste.
E no fim, volta a ser o verbo. Arranha-me a língua
com as suas unhas de consoantes; e pego-lhe ao colo,
para que não fira os pés nas pedras do campo, ouvindo
a sua voz de carne e osso escrever-me, no fundo
da cabeça, e a toda a largura da alma, a frase
redonda do amor. Trabalho a sua sintaxe, até
descobrir as articulações do segredo; e abraço
o corpo que nasce na conjugação
das suas pálpebras, abertas até ao fundo
dos olhos, onde te vejo.
2 comentários:
Começaste bem. Porque no princípio era o verbo. Quer dizer, o poço. Quer dizer, os baldes de água. Quer dizer, o chão de agosto.
No princípio era a palavra
que deu voz aos poetas
Cantem, poetas até que a voz vos pare
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