segunda-feira, abril 05, 2004

Começando pelo princípio

Numa visita a Silves, o autor de Um pouco mais de Sul trouxe consigo, para me emprestar, O Estado dos Campos, de Nuno Júdice, edição da Dom Quixote, 2003. Ontem, Domingo, iniciei, deliciado, a sua leitura. Creio que não há melhor maneira de vos revelar este belo livro do que dá-lo a conhecer a partir de um dos seus poemas. Qual? perguntava-me.

Decidi começar pelo princípio:

  • GÉNESIS

    No princípio era o verbo, e eu traduzia-o
    em palavras com um sentido fundo como o poço
    de onde as mulheres puxavam os baldes de água,
    à tarde, para refrescar o chão de agosto. Nas
    cordas de roupa do quintal, eu estendia as palavras
    para as secar: e via o sol atravessá-las até ao osso,
    dissecando o seu corpo mais vago - as vogais fechadas
    do fim, ou a enunciação de um infinito
    até ao limite do verbo.

    No princípio também eram as coisas: umas
    sobre as outras, no alinhamento curvo do destino,
    como se não estivessem para cair nessa trepidação
    de rimas que um fim de verso pode trazer. Então,
    levantava-as do chão onde se tinham partido em pedaços,
    as coisas brancas da lua e as coisas vermelhas do sol, e
    colava-as na parede, vendo o muro subir
    até ao tecto celeste.

    E no fim, volta a ser o verbo. Arranha-me a língua
    com as suas unhas de consoantes; e pego-lhe ao colo,
    para que não fira os pés nas pedras do campo, ouvindo
    a sua voz de carne e osso escrever-me, no fundo
    da cabeça, e a toda a largura da alma, a frase
    redonda do amor. Trabalho a sua sintaxe, até
    descobrir as articulações do segredo; e abraço
    o corpo que nasce na conjugação
    das suas pálpebras, abertas até ao fundo
    dos olhos, onde te vejo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Começaste bem. Porque no princípio era o verbo. Quer dizer, o poço. Quer dizer, os baldes de água. Quer dizer, o chão de agosto.

Anónimo disse...

No princípio era a palavra
que deu voz aos poetas
Cantem, poetas até que a voz vos pare