quarta-feira, junho 23, 2004

O olhar atento de quem ama o Sul

Entristece-me esta súbita partida do Zé Carlos; deste amigo que os blogs me trouxeram, aproximando-nos, de afinidade em afinidade, até à amizade pessoal.

Enquanto não regressar vou sentir a ausência da sua escrita, tecida com o sal da maresia e com a cal que guarda a luz e o calor do Sol até um outro dia:

  • Luísa ficou por algum tempo a olhar de longe a curva do caminho e o telhado de casa a adivinhar-se devagar a esta luz do lento amanhecer de fins de Setembro, esta luz coada da alba a desprender-se das árvores e dos matos, esta leve exalação do ar humedecido a levantar-se nos muros virados ao nascente como se o mundo não tivesse acabado e o alvor pudesse ainda trazer por instantes a memória da cal e da água do tanque, o voo das aves, o rumor contínuo da sombra nas encostas da umbria. O tempo não avança. Esta mesma luz subia da praia quando Luísa compreendeu que ficara sozinha na esplanada das dunas e ouvia, como ouve agora à distância, o marulhar do levante na maré-vaza. A mesma luz do parque de estacionamento, noite ainda, poisada no tejadilho dos carros a anunciar um dia quase de Verão. A mesma luz que fazia brilhar pequenos seixos na linha de rebentação quando correu pelo areal deserto e deixou de ver o mar.
    (...)


José Carlos Barros
O dia em que o mar desapareceu
Prémio Manuel Teixeira Gomes - 2002
Edições Colibri/Câmara Municipal de Portimão
Lisboa 2003


Sem comentários: