sexta-feira, abril 08, 2005

Um conto a fazer de conta


  • Jack quase que se mordia de desespero com o incómodo que aquilo lhe provocava. Só um longo banho conseguia aliviar-lhe tamanha tensão.
    Isto acontecia-lhe frequentemente quando se dirigia ao restaurante, ao aproximar-se pelas traseiras a partir da rua onde morava. Também várias vezes se confrontou com aquela situação quando lhe dava para deambular pela cidade, sem destino definido, enquanto aguardava a saída de Louis, o seu melhor amigo, que frequentava a Universidade.
    Uma tarde até, na sequência de um encontro com Linda, lhe aconteceu o inesperado. Tinham saído para a periferia da cidade e entraram no parque. Nessa tarde aprazível, inocentemente, fizeram amor e banharam-se depois nas águas refrescantes de um pequeno curso de água que havia por perto. Deitados ao sol, sobre a relva, depararam-se com o que temia. Eis que se aproximavam, ameaçadores.
    Fugiram precipitadamente até que os perderam de vista. Já próximo de casa, despediram-se com um beijo, seguindo cada um para seu lado.
    Foi a partir desse dia que passou a estranhar o comportamento de Linda.
    Uma noite, nas imediações do beco onde se acumulavam os contentores de lixo da vizinhança, viu-os chegar. Um autêntico gang. Trajavam roupagens escuras, muito semelhantes, talvez até iguais umas às outras, feitas de um material que brilhava, mesmo à luz mortiça do candeeiro de rua. Linda vinha com eles.
    Essa noite foi um horror. Sonhou. E o sonho agigantava as dimensões. Pareciam-lhe negros, enormes vampiros, chupando-lhe o sangue.
    No dia seguinte Louis chamou-o e colocou-lhe, em torno do pescoço, uma fita colorida. Sorriu e disse-lhe:
              - «Vais ver como eles fogem.»
    Nesse final de tarde, regressando a casa, pelo beco, eles ali estavam de novo. Só lhe ocorreu fugir, mas concentrou-se nas palavras de Louis e avançou para eles, determinado. Sentiu que um frémito de hesitação atravessou o gang, de olhos postos na sua fita colorida. Linda aproximou-se. O grupo de "vampiros" adquirira a sua dimensão real e afastava-se, receoso. Linda, a seu lado, parecia a mesma que ele sempre conhecera: terna, afável, compreensiva.
    Subitamente, Linda como que fungou, tossiu e esquivou-se, sem nada comentar.
    Ao chegar a casa quis falar a Louis do sucedido, mas nada conseguiu dizer. Lembrou-se então que, também ele, fungara e tossira, incomodado com um certo cheiro irritante, um odor a gasolina, a que se fora habituando ao longo do dia.
    Na manhã seguinte, no caminho para a Universidade, Louis desviou-se do percurso habitual. Seguiu-o. Alguns passos adiante avistaram a casa de Linda. Ela estava à porta e recebeu-os com alegria.
    Louis parou, retirou da algibeira uma fita colorida, semelhante à de Jack, e colocou-a cuidadosamente ao pescoço de Linda.
    Jack e Linda agradeceram a oferta que os libertava definitivamente daquele gang de pulgas e pulgões, lambendo-lhe as mãos. Quase em coro, ainda articularam um "obrigado", enquanto Louis se afastava:
              - «Ão, ão...!»


9 comentários:

hfm disse...

António, tive mesmo de sorrir! Belo texto, belo final. Um abraço

Anónimo disse...

Então um conto...logo sobre o "ão, ão", nada mais a propósito que este comentário, vindo daqui..
Sabias que o único pais (se calhar idioma) onde os cães fazem ão,ão é...

manuel a. domingos disse...

gostei, amigo

Anónimo disse...

Gostei muito. Votos de mais inspiração.

luis ene disse...

Aposto que tens cães em casa! heheehh Uma interessante reviravolta.

Anónimo disse...

Bem esgalhado, amigo Baeta!
Um ãobraço!

Anónimo disse...

Boa onda! Gostei muito, fico à espera do próximo.

Anónimo disse...

Hans Cristian Andersen que por aí anda festejado o acalente sempre que de inspiração tenha sede
Gostei "de verdade"!

abraço
Luisa

Anónimo disse...

Migo, Li-o a primeira vez e por ti fui levado para outra interpretação...mais humana.
Depois de chegar ao final surpreendente, fui obrigado a ler novamente o texto.
Adorei.Um abraço.