Este não é o conto que desde a semana passado havia prometido. Este é um outro que se lhe interpôs:
Um 1º de Maio em Silves
Era tarde na véspera do 1º de Maio. Passaria já mesmo da meia-noite. Ali, no Largo dos Bombeiros, sob as arcadas dos Paços do Concelho, um grupo de rapazes conversava. Trocavam sonhos e falavam de um tempo em que era possível desejar um mundo melhor sem ter que se refugiar de ouvidos indiscretos ou ler livremente o livro que agora passavam, escondido, de mão em mão, sem pôr em risco a sua segurança e a dos outros.
Durante o dia alguns homens tinham sido presos, dizia-se que preventivamente, por suspeição da polícia política. Eram homens que já haviam passado pelas prisões do regime ou tinham sido conotados com Humberto Delgado, na sequência da visibilidade permitida no período "legal" que precedera as eleições.
Entretanto, amedrontado, porque sozinho na noite, em serviço de segurança na estação elevatória da barragem, junto a Mata Mouros, o homem que ali velava telefonara à GNR relatando ruídos suspeitos nas imediações.
De súbito, em desesperado alarme, sai por detrás do grupo de rapazes a ambulância, abertos os portões do Quartel dos Bombeiros. Frementes de curiosidade acorrem junto do telefonista de serviço inquirindo sobre o sucedido. Um homem fora baleado.
A íngreme ladeira da rua da Sé fora fácil naquele dia. A dose de adrenalina libertada facilitou o esforço imposto na corrida até junto à porta de urgência do hospital. Alguns minutos depois, transportado numa maca, a partir do interior da ambulância, avistavam um agente da PSP, inconsciente, baleado no ventre. Um fino risco de sangue desenhava-se-lhe na pele.
No 1º de Maio daquele ano não se falava de outra coisa.
Ao tempo havia duas forças policiais: a GNR, que patrulhava as zonas rurais e as sedes de freguesia, e a PSP que policiava a cidade. Ao apelo do vigilante da estação elevatória, a GNR enviara dois agentes que se camuflaram no local.
Mais amedrontado ainda, talvez pelo ruído dos agentes da guarda republicana que entretanto vigiavam as imediações, mas cuja presença desconhecia, resolvera o segurança da estação elevatória interceder junto da PSP.
O guarda-republicano vigiava a aproximação furtiva daquele vulto.
- «Alto ou disparo!», gritou.
O vulto avançou para ele. Disparou.
O agente da PSP veio a recuperar dos ferimentos. Mas o ridículo da situação foi, para aqueles rapazes, mais um traço na composição da caricatura do regime.
5 comentários:
A repressão política parece que tem sempre um lado aterrador e outro cômico, ridículo.
É o que teu conto mostra muito bem.
Este pequeno grande mundo de faz de conta onde tudo ou nada conta... dá mesmo nestas coisas.
A realidade é sempre mais cruel que a ficção.
Um abraço.
Belas palavras sobre a realidade dum tempo onde, como diz Torquato da Luz, "a realidade é sempre mais cruel que a ficção!". Gostei António.
Era a dura realidade...
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