(...)
A janela do quarto onde dormirei deita para o campo aberto, para um campo indefinido, que é todos os campos, para a grande noite vagamente constelada onde uma aragem que não se ouve se sente. Sentado à janela, contemplo com os sentidos esta coisa nenhuma da vida universal que está lá fora. A hora harmoniza-se numa sensação inquieta, desde a invisibilidade visível de tudo até à madeira vagamente rugosa de ter estalado a tinta velha do parapeito branquejante, onde está estendidamente apoiada de lado a minha mão esquerda.
Quantas vezes, contudo, não anseio visualmente por esta paz de onde quase fugiria agora, se fosse fácil ou decente! Quantas vezes julgo crer - lá em baixo, entre as ruas estreitas de casas altas - que a paz, a prosa, o definitivo estariam antes aqui, entre as coisas naturais, que ali onde o pano de mesa da civilização faz esquecer o pinho já pintado em que assenta! E, agora, aqui, sentindo-me saudável, cansado a bem, estou intranquilo, estou preso, estou saudoso.
Não sei se é a mim que acontece, se a todos os que a civilização fez nascer outra vez. Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o artificial passou a ser o natural, e é o natural que é estranho. Não digo bem: o artificial não passou a ser o natural; o natural passou a ser diferente. (...)
Bernardo Soares
Fernando Pessoa
Livro do Desassossego
Assírio & Alvim, Lisboa 2005
12 comentários:
Bom fim de semana.
Bjx
desassossegada, andei a eito.
saí do "cantigas...", passei pelos "... desabafos" e fiquei-me no "blogal...". saberás, amigo, dizer-me porquê?
será um caso de amor ou desamor?
adivinha, António, se fores capaz.
bom fim de semana.
bjs.
Fiquei-me aqui a lê-lo e a pensar nesse natural...
Gabriela
Não sei de que "cantigas" falas e o quadro de visitas do teu desassossego não me permite abarcar por inteiro esse teu amor ou desamor. Não arrisco.
Helena
Também fiquei a pensar nesse "natural", mas sei do que fala Bernardo Soares. Sinto-me meio perdido nos espeços naturais ao fim de algum tempo
Se houver uma tabacaria na esquina, lá em baixo, será perfeito. Pelo menos enquanto não forem ilegais. As tabacarias...
É o que sinto em Terras do Falcoeiro. Devo lá ir na Páscoa.
Um abraço,
RS
Então, para a próxima semana, passado o tempo de mergulho no natural, há que voltar à superfície, quero dizer, ao Porto.
Helena
Os "espeços naturais" que mencionei na minha nota são espaços naturais.
Fica corrigido.
« Sentado à janela, contemplo com os sentidos esta coisa nenhuma da vida universal que está lá fora. A hora harmoniza-se numa sensação inquieta, desde a invisibilidade visível de tudo... »
Um estado de espírito muito meu conhecido, mas sem conseguir intelectualizá-lo e verbalizá-lo como o desassossegado do Bernardo Soares. É este um livro que nunca arrumo nas prateleiras...
bjs,
fernanda.
Fernanda
O livro, procuro-o à minha cabeceira e o desassossego, que não procuro, nunca me larga.
Felizmente, porque quem não vive desassossegado ...não sabe viver .
Não sabe agora?! Vai vivendo ... sossegado. ;)
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