sexta-feira, abril 07, 2006

Em jeito de fim-de-semana

Janela, Abril 2006, © António Baeta Oliveira
  • (...)
    A janela do quarto onde dormirei deita para o campo aberto, para um campo indefinido, que é todos os campos, para a grande noite vagamente constelada onde uma aragem que não se ouve se sente. Sentado à janela, contemplo com os sentidos esta coisa nenhuma da vida universal que está lá fora. A hora harmoniza-se numa sensação inquieta, desde a invisibilidade visível de tudo até à madeira vagamente rugosa de ter estalado a tinta velha do parapeito branquejante, onde está estendidamente apoiada de lado a minha mão esquerda.

    Quantas vezes, contudo, não anseio visualmente por esta paz de onde quase fugiria agora, se fosse fácil ou decente! Quantas vezes julgo crer - lá em baixo, entre as ruas estreitas de casas altas - que a paz, a prosa, o definitivo estariam antes aqui, entre as coisas naturais, que ali onde o pano de mesa da civilização faz esquecer o pinho já pintado em que assenta! E, agora, aqui, sentindo-me saudável, cansado a bem, estou intranquilo, estou preso, estou saudoso.

    Não sei se é a mim que acontece, se a todos os que a civilização fez nascer outra vez. Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o artificial passou a ser o natural, e é o natural que é estranho. Não digo bem: o artificial não passou a ser o natural; o natural passou a ser diferente. (...)

Bernardo Soares
Fernando Pessoa
Livro do Desassossego
Assírio & Alvim, Lisboa 2005

12 comentários:

Carla disse...

Bom fim de semana.
Bjx

António Simões ,Augusto Mota e Gabriela Rocha Martins disse...

desassossegada, andei a eito.
saí do "cantigas...", passei pelos "... desabafos" e fiquei-me no "blogal...". saberás, amigo, dizer-me porquê?
será um caso de amor ou desamor?
adivinha, António, se fores capaz.
bom fim de semana.
bjs.

hfm disse...

Fiquei-me aqui a lê-lo e a pensar nesse natural...

Unknown disse...

Gabriela
Não sei de que "cantigas" falas e o quadro de visitas do teu desassossego não me permite abarcar por inteiro esse teu amor ou desamor. Não arrisco.

Unknown disse...

Helena

Também fiquei a pensar nesse "natural", mas sei do que fala Bernardo Soares. Sinto-me meio perdido nos espeços naturais ao fim de algum tempo

RS disse...

Se houver uma tabacaria na esquina, lá em baixo, será perfeito. Pelo menos enquanto não forem ilegais. As tabacarias...

É o que sinto em Terras do Falcoeiro. Devo lá ir na Páscoa.
Um abraço,
RS

Unknown disse...

Então, para a próxima semana, passado o tempo de mergulho no natural, há que voltar à superfície, quero dizer, ao Porto.

Unknown disse...

Helena
Os "espeços naturais" que mencionei na minha nota são espaços naturais.
Fica corrigido.

Anónimo disse...

« Sentado à janela, contemplo com os sentidos esta coisa nenhuma da vida universal que está lá fora. A hora harmoniza-se numa sensação inquieta, desde a invisibilidade visível de tudo... »

Um estado de espírito muito meu conhecido, mas sem conseguir intelectualizá-lo e verbalizá-lo como o desassossegado do Bernardo Soares. É este um livro que nunca arrumo nas prateleiras...
bjs,
fernanda.

Unknown disse...

Fernanda
O livro, procuro-o à minha cabeceira e o desassossego, que não procuro, nunca me larga.

Anónimo disse...

Felizmente, porque quem não vive desassossegado ...não sabe viver .

Unknown disse...

Não sabe agora?! Vai vivendo ... sossegado. ;)