segunda-feira, março 19, 2007

Na expectativa da Primavera

Barragem do Arade, Primavera de 2006, © António Baeta Oliveira

Esta foto não pretende ilustrar o poema. Colou-se-me à ideia do título que dei ao post. Quando muito poderia sugerir os montes, que "A vista dos ciprestes ocultava... para lá do rio e dos valados..."

  • No campo, à tarde

    A vista dos ciprestes ocultava os montes,
    para lá do rio e dos valados; os pássaros
    pretos lembravam que o inverno não chegara
    ao fim; um mar demasiado branco empurrava
    a memória para os confins da infância. Assim,
    por trás dos vidros fechados, respirando
    um fumo de madeiras velhas, ouvia o vento,
    sem perceber a frase obscura que ele
    repetia num murmúrio incessante. Alguém fala,
    num dos quartos; e essa voz atravessa o
    corredor, monótona, perdendo-se dos lábios
    que a formulam: numa ilusão de eternidade,
    envolve-se nos muros do quintal, como a antiga
    hera, designando a pedra com uma resignação
    humana. Os corpos dispersam-se na paisagem,
    contrariando de inquietação a expectativa
    primaveril. O frio da tarde acentua o contorno
    dos objectos. Mas o seu perfil, que o amor expôs
    à usura do tempo, tornou-se sombra, ou mancha.


Nuno Júdice
Poesia Reunida (1967-2000)
As Regras da Perspectiva (1990)
Dom Quixote, Lisboa, 2000

2 comentários:

hfm disse...

"Mas o seu perfil, que o amor expôs
à usura do tempo, tornou-se sombra, ou mancha."

como isto se cola a esta cidade. Um abraco

Unknown disse...

Helena
Quis deixar um comentário no teu blog, mas não consegui.

Dizia assim:
A tua lágrima salgou-me a garganta num aperto incontido.
Como a expressão do belo nos fere cá dentro!