quinta-feira, agosto 21, 2003

Fruir a cidade

Embora os dias ainda se mantenham quentes, se bem que não com aquela intensidade que nos castigou durante semanas, os finais de tarde trazem-nos já uma brisa agradável que convida a passear.

Durante o passeio, junto ao rio, ocorreu-me um texto que havia escrito faz alguns anos e a que tinha dado o mesmo título que agora figura no topo deste post.
Escrevi-o para "O Grés", um projecto de jornal que acabou por sucumbir à míngua de leitores que garantissem a sua sobrevivência.

Dizia assim, a dado passo:
(...)
    - Passa! Passa! Estou aqui sozinho.
    - Chuta agora!
    - Golo!

Era a algazarra da miudagem na "nova baixa" da cidade, a nova zona das lojas, com calçada portuguesa e sem trânsito automóvel.
Apesar do cenário, com um ar mais condizente com os tempos modernos, os miúdos parecem ser sempre os mesmos e continuam a ameaçar as mesmas montras e a reagir da mesma forma aos que lhes apontam os perigos ou criticam a sua actividade.
Sinto-me naquela idade e viajo no tempo, recuando até ao quintalão do Vasconcelos, logo a seguir ao Correio, e aos meus jogos de futebol ou às experiências de cinema com uma lâmpada cheia de água e uma lanterna, projectando as "fitas", que comprávamos ao Domingos Baião na fábrica dos pirolitos.
Essas "fitas" eram bocados de sonho dos filmes que tínhamos visto no Teatro Mascarenhas Gregório, o "Cinema", ou na Esplanada do Jardim ou, ainda mais tarde, no barracão do Mariani.
(...)
E os arredores!?
A fonte férrea e a ribeira do Enxerim ou então a Ilha da Sra. do Rosário e o Moinho do Valentim, para a pesca do caranguejo e umas banhocas refrescantes.
Mas inesquecível é mesmo a Levada.
Aí o rio corria limpo desde a serra, sem influência marcante das marés, salobras. A água corria por montes e vales ainda sem fosfatos ou venenos para a mosca, o escaravelho, a borboleta, a formiga, ... A água era mesmo límpida ali, na Levada, junto ao Pego da Nogueira e as tardes de Verão eram longas e quentes, e convinha deixar secar as cuecas, não fosse a mãe descobrir onde passáramos a tarde.
Ainda hoje fruo a minha cidade.
Passeio por ela amiudadamente. Visito o rio praticamente todos os dias. Desfruto os seus largos, os seus recantos, os seus jardins, as suas ruas, os seus edifícios. Há coisas de que gosto, outras de que nem tanto, (mas que não são graves e até há outras pessoas que apreciam), mas abomino o desmazelo ou a falta de respeito.
As margens dos rios são domínio público e o seu acesso deve estar garantido. Não é verdade?
Como posso fazer para ir até à Levada ou ao Pego da Nogueira? Saltando muros ou cancelas? Enfrentando cães? Arriscando um desaguisado com o suposto proprietário?
Aqui está um assunto que deve ser corrigido sob pena dos ditos proprietários aparecerem para aí a reivindicar direitos, porque ninguém usa os caminhos, que já vedaram, há mais de não sei quantos anos.
    - Mas quando quiser pode pedir licença que não levanto problemas!

Terei que pedir licença para passar num caminho que me pertence por direito?
Será que voltaremos a passear junto ao rio, a montante da ponte nova? Quando será isso?(...)"


Depois da Ponte Nova, a montante do rio, continua a não ser possível ter acesso às suas margens. Nem os bombeiros.

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