quarta-feira, agosto 20, 2003

Interrogações que compartilho (II)

Curioso!
Esta semana, nos blogs, por duas vezes, encontrei interrogações que me coloco, que também partilho em conversas e que me apetece propor em resposta a desabafos e contrariedades que por aí vou ouvindo.
Possivelmente os seus autores não as terão escrito como eu as entendi, nem eu partilho por inteiro todas as suas afirmações, mas que correspondem a interrogações das que mais me preocupam, é verdade.
Assim escrevia eu, ontem, a propósito do que me suscitou esta segunda transcrição.

Em Cristóvão de Moura, Paulo Varela Gomes interroga-se sobre a degradação da democracia, ameaça que me preocupa profundamente:

"(... / ...) Sem mediação que não seja a dos media, o poder passou a ter de cortejar os media e os efeitos-de-media. É isso que provoca o drama da estupidificação da política e também o drama da descolagem do poder real em relação ao poder dos políticos, cada vez mais transformados numa espécie de bobos da multidão, ficando o poder real para os G8s, FMIs, Bancos Mundiais, etc, instâncias que não aparecem na televisão.
A universalização do sufrágio e a sua subsequente mediatização têm sido acompanhadas pela universalização dos espaços colectivos: desde logo a televisão, claro, mas também a escola, a rua, os espaços comerciais, os espaços culturais. E até a família se vai tornando uma instância universal, cujas relações internas e cujo modelo ideal são mediatizados pela televisão ou as revistas 'do coração'.
Bens raros e de qualidade como, por exemplo, o património, são desfrutados directamente por cada vez mais gente e isso tem significado uma alteração constante da qualidade desses bens, progressivamente transformados em verdadeiras mercadorias de super-mercado.
A escola massificada dos nossos dias, ao implicar um recrutamento massivo de professores e o processamento em série de instalações, transportes, etc., atravessa uma crise típica de uma escola desenhada para elites e ainda inadaptada às massas.
Os intelectuais em sentido lato - a classe média com consumos e preocupações culturais que é sempre minoritária mesmo em países muito avançados - consideram insuportáveis os aspectos mais visíveis desta universalização de direitos e acessos. Generaliza-se a tendência para detestar políticos, televisão, jornalistas, etc., e para exigir a governantes, professores e outros responsáveis pela gestão social aquilo que eles não podem dar: a re-criação de um mundo de elites (do gosto, desde logo, mas também do pensamento, da ciência, etc.). Trata-se de um claro sintoma de que os intelectuais estão a ser desprovidos do poder de intermediação que, enquanto políticos, escritores, artistas ou jornalistas, exerceram entre o final do século XVIII e o aparecimento da televisão de massas.
Na minha opinião, a 'causa' do problema - se 'causa' existe - é a decadência de todas as instâncias de mediação que transformavam o 'povo' em corpos sociais concretos como, por exemplo, os eleitores, o proletariado, a classe operária, os militantes ou simpatizantes de partidos políticos. Estes corpos sociais, além de organizarem e articularem a multidão tornando a vontade popular expressável pelas elites, diferenciavam a multidão, quebravam a homogeneidade que permite falar em multidão - enquanto que a televisão e os media indiferenciam, a escola de massas indiferencia, a cultura de massas indiferencia, ou seja, constituem (formatam) a multidão.
O desabamento das elites intelectuais e políticas, o desaparecimento destes corpos sociais (por exemplo, o fim dos partidos - que hoje não são mais que grupos profissionais de arrebanhadores de votos), deu lugar à presença 'em directo' da multidão na esfera política e nos espaços colectivos.
O povo-em-directo faz com que a democracia, tal como a conhecemos, esteja de facto ameaçada de morte por todo o género de demagogos populistas e pelo poder oculto de quem nunca aparece na televisão.
Como se enfrenta esta ameaça, não sei.(... / ...)"


Como se trata de uma transcrição, é sempre aconselhável que seja lida na íntegra, o que pode fazer através do link que se encontra no seu início.
Aconselho vivamente a sua leitura integral, pois trata-se de um texto mais vasto e bem polémico.

Na sequência do meu post de ontem, Rui Semblano, em A Sombra, transcreve a minha introdução, a que adiciona um texto complementar, muito sentido, explicitando a sua maneira de estar perante as afirmações que produziu. Menciona-me com atributos nos quais não me reconheço (particularmente o tratamento de arabista), mas que agradeço pela simpatia com que o faz.

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