sexta-feira, junho 18, 2004

Nocturno

Na sequência do 8º aniversário da morte de David Mourão Ferreira quero compartilhar um seu poema, que tem muito a ver com estas noites quentes do verão que se aproxima e que considero um dos mais eróticos que conheço, se bem que estas coisas do erotismo estejam carregadas de subjectividade.
Retirei-o da Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, de Eugénio de Andrade, numa edição de Campo das Letras, Porto 1999, que "me ofereci" pelo meu aniversário, em 2002.

  • NOCTURNO

    Eram, na rua, passos de mulher.
    Era o meu coração que os soletrava.
    Era, na jarra, além do malmequer,
    espectral o espinho de uma rosa brava...

    Era, no copo, além do gim, o gelo;
    além do gelo, a roda de limão...
    Era a mão de ninguém no meu cabelo.
    Era a noite mais quente deste verão.

    Era, no gira-discos, o Martírio
    de São Sebastião
    , de Debussy...
    Era, na jarra, de repente, um lírio!
    Era a certeza de ficar sem ti.

    Era o ladrar dos cães na vizinhança.
    Era, na sombra, um choro de criança...


3 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro:
Já se passaram oito anos?
Fui amigo do David e esse é um dos poemas dele que há muito sei de cor.
O abraço de sempre e obrigado.

Unknown disse...

Curiosamente também sei este poema de cor faz muito tempo.
Outro abraço.

Anónimo disse...

Já conhecia este texto. Maravilha. Um misto de desejo, sonho e realidade, um ténue fio narrativo, em três actos, o simbolismo de rosa e lírio ( memória de Garrett? ), uma separação amargurada, no choro de criança.
P. S. O David era um entre muitos Não passava despercebido, mas também não polarizava as atenções. Fizemos um teste sobre G. Vicente. Todos sabíamos muito, escrevemos páginas e páginas, com citações e tudo, ele escreveu meia página, M. de Lurdes Belchior leu e deu-lhe a nota máxima. Era um texto diferente dos da arraia miúda, síntese dum saber pessoal e amadurecido, nós repetíamos, ele criava.fcr.