quarta-feira, junho 30, 2004

A MOSTRA que Silves não viu

Mostra de Jovens Criadores, Silves, Junho 2004, © António Baeta Oliveira
A MOSTRA que Silves não viu

Os silvenses terão hoje a última oportunidade para visitar a Mostra de Jovens Criadores, que mereceu a atenção elogiosa de grandes jornais nacionais, como o "Público", o "Expresso" e até o "Jornal de Letras".
Trata-se, de tal modo, de uma mostra diferente e inovadora, vanguardista, experimental e arrojada, ou não fosse uma MOSTRA juvenil, que me pergunto sobre o porquê da sua realização numa cidade do interior algarvio, onde a palavra cultura é identificada com "Festival da Cerveja" ou "Produções da Fábrica do Inglês" ou, talvez ainda, com o slogan eleitoral de "Silves, capital algarvia da cultura".
Há mais coisas, por certo, mas restringem-se à meia centena, um pouco mais ou um pouco menos, de pessoas atentas à oferta cultural de raiz local, afinal as mesmas que, além dos organizadores, jovens criadores, seus amigos e familiares, compareceram de forma regular, interessada e participada nos numerosos eventos que aqui tiveram lugar, particularmente os que decorreram até 12 de Junho.

Que contactos, laços, afinidades ou aprendizagens persistirão depois de terminada a MOSTRA?
Que preocupação houve em dar a conhecer, em fazer interessar, os agentes culturais locais?
Como se procedeu para animar e incentivar a participação dos jovens que aqui frequentam o 10º, 11º e 12º anos, nomeadamente os de cursos ligados à arte, ou os alunos do Instituto Piaget?

Esta MOSTRA passou ao lado da cidade.

Que venha de novo, que venha outra vez, que venha sempre, mas que venha para estruturar, para criar raízes, para gerar novos públicos, para que se transforme, realmente, num acto cultural de expressão local e não para impressionar quem, ao longe, através de jornais de expressão nacional, julgue tratar-se de descentralização cultural ou da realização da autarquia de uma pequena cidade de província, sem ligações à actual Secretaria de Estado da Juventude e Desportos que, curiosamente, também escolheu Silves como cidade anfitriã da exposição do "Euro '2004". Favorecimentos partidários?!

Aqui, a MOSTRA só ficou hospedada, não passou de turismo. Se era "só para o inglês ver", o "inglês" não viu.


terça-feira, junho 29, 2004

A invídia

Lamentava, outro dia (Junho 23, 2004), o desaparecimento de José Carlos Barros e a ausência da sua escrita em Um pouco mais de Sul, onde assinava como jcb.
Sensível a esse meu lamento ofereceu-me um poema inédito, que me dedicou:

  • A invídia
      Para o António


    Nunca adormeças à sombra das figueiras quando
    Todo o seu esforço se concentra em retirar da
    Luz da tarde as mais pequenas
    Vibrações do ar: nesses instantes pode

    Acontecer que os teus nomes e o da água do poço
    Se confundam ou multipliquem numa aritmética
    Sem retorno e só com as últimas manhãs de
    Novembro te seja possível regressar ao alpendre

    De onde saíras para adormecer à sombra das figueiras
    Ignorando que nada podia proteger-te da
    Excessiva luz do meio dia, do logro, das antigas
    Promessas de felicidade e da invídia.

            Cacela, 23 de Junho de 2004

P.S. Já me ofereceu um segundo poema, que prometo publicar brevemente.


segunda-feira, junho 28, 2004

Acédia

Não quero ser acusado de acédia, esse pecado capital a que o ABRUPTO se refere no post das 09h37 do dia 27.6.04, e creio mesmo que estamos perante um assunto de extrema gravidade, sobre o qual todos nos deveremos pronunciar - o da emergência da política-espectáculo, protagonizada pelo político do espectáculo.

Abominaria ver Santana Lopes a liderar os destinos do país mas, desculpem o meu maquiavelismo, preferiria vê-lo por dois anos, sem o apoio de um sufrágio, do que por quatro anos com votação popular, saindo o "tiro pela culatra".
Pior quadro ainda seria ter que aceitá-lo por seis anos, por ausência de uma oposição competente.
Prefiro dois, a quatro ou a seis. "Confio" no homem que deixou a direcção do Sporting para ser presidente da câmara da Figueira, que trocou a câmara da Figueira pela de Lisboa e que agora se prepara para abandonar a câmara de Lisboa e liderar o governo. Talvez isso o impeça de se tornar Presidente da República.

P. S. Complemente esta sua leitura com estoutra, No Arame, sob o título Early Morning Blogs.


sexta-feira, junho 25, 2004

Os ouvidos têm paredes

O título, acima, é uma das máximas que se tornou célebre pelo Maio de 68.
Já a frase que se segue, em baixo, é minha, embora possa ter já sido pronunciada por muitos outros:

  • Em terra de milagres, quem não tem olho não vê.


quinta-feira, junho 24, 2004

Esta euforia deprime-me!

Esta vaga de euforia deprime-me.
Estou a precisar de umas marchas populares, de uma noite com tunas estudantis, de umas eleições com muitos brindes, de um serão no sofá em frente da TVI ou até de um grande jogo de futebol; melhor ainda, talvez, de uma noite de fado, mas sobretudo de um milagre.

Já que, apesar desta euforia, passei por aqui, quero deixar-vos este endereço para o texto, agora aprovado, da Constituição Europeia. É que convém conhecê-la antes de votá-la.


quarta-feira, junho 23, 2004

O olhar atento de quem ama o Sul

Entristece-me esta súbita partida do Zé Carlos; deste amigo que os blogs me trouxeram, aproximando-nos, de afinidade em afinidade, até à amizade pessoal.

Enquanto não regressar vou sentir a ausência da sua escrita, tecida com o sal da maresia e com a cal que guarda a luz e o calor do Sol até um outro dia:

  • Luísa ficou por algum tempo a olhar de longe a curva do caminho e o telhado de casa a adivinhar-se devagar a esta luz do lento amanhecer de fins de Setembro, esta luz coada da alba a desprender-se das árvores e dos matos, esta leve exalação do ar humedecido a levantar-se nos muros virados ao nascente como se o mundo não tivesse acabado e o alvor pudesse ainda trazer por instantes a memória da cal e da água do tanque, o voo das aves, o rumor contínuo da sombra nas encostas da umbria. O tempo não avança. Esta mesma luz subia da praia quando Luísa compreendeu que ficara sozinha na esplanada das dunas e ouvia, como ouve agora à distância, o marulhar do levante na maré-vaza. A mesma luz do parque de estacionamento, noite ainda, poisada no tejadilho dos carros a anunciar um dia quase de Verão. A mesma luz que fazia brilhar pequenos seixos na linha de rebentação quando correu pelo areal deserto e deixou de ver o mar.
    (...)


José Carlos Barros
O dia em que o mar desapareceu
Prémio Manuel Teixeira Gomes - 2002
Edições Colibri/Câmara Municipal de Portimão
Lisboa 2003


sexta-feira, junho 18, 2004

Nocturno

Na sequência do 8º aniversário da morte de David Mourão Ferreira quero compartilhar um seu poema, que tem muito a ver com estas noites quentes do verão que se aproxima e que considero um dos mais eróticos que conheço, se bem que estas coisas do erotismo estejam carregadas de subjectividade.
Retirei-o da Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, de Eugénio de Andrade, numa edição de Campo das Letras, Porto 1999, que "me ofereci" pelo meu aniversário, em 2002.

  • NOCTURNO

    Eram, na rua, passos de mulher.
    Era o meu coração que os soletrava.
    Era, na jarra, além do malmequer,
    espectral o espinho de uma rosa brava...

    Era, no copo, além do gim, o gelo;
    além do gelo, a roda de limão...
    Era a mão de ninguém no meu cabelo.
    Era a noite mais quente deste verão.

    Era, no gira-discos, o Martírio
    de São Sebastião
    , de Debussy...
    Era, na jarra, de repente, um lírio!
    Era a certeza de ficar sem ti.

    Era o ladrar dos cães na vizinhança.
    Era, na sombra, um choro de criança...


quinta-feira, junho 17, 2004

Dá-me o teu sorriso!

Ar-Rashid Ibn 'Abbad, filho de al-Mu'tamid, após a morte de seu irmão mais velho, Siraj ad-Dawla (nascido em Silves), chegou a ser designado príncipe herdeiro. Foi alcaide de Sevilha e após a queda da dinastia abádida acompanhou seu pai no exílio em Marrocos.
O pequeno excerto que vos apresento foi extraído de um poema, que muito provavelmente teria dedicado a seu pai:


      (...)
      dá-me o teu sorriso!
      com ele dispensarei a luz da manhã
      e o próprio brilho da candeia.

Adalberto Alves
O meu coração é árabe
Assírio & Alvim, Lisboa 1998



quarta-feira, junho 16, 2004

Há Porters, Gershwins... e Caetanos

Tenho andado na companhia de Caetano Veloso e A Foreign Sound.
Há dias, há momentos, há "coisas"... há Porters e Gershwins que nos brindam com uma maior intensidade de viver.
São muito ricas estas interpretações de Caetano sobre temas bem conhecidos noutras vozes, noutras orquestras, noutras sonoridades, mas a que ele confere uma calma, requintada e personalíssima vivência.
Não me canso de ouvir So in love, Body and soul, The man I love, Smoke gets in your eyes, Summertime, Cry me a river, ou ainda Diana (a outra, a do Paul Anka), Come as you are, Detached ou Manhattan, a fechar, antes que aqui reproduza todo o conteúdo do CD.

Vocês já experimentaram? Vão por mim, se Porter, Gershwin ou Caetano vos dizem alguma coisa!


terça-feira, junho 15, 2004

"Poetas-espiões" no al-Ândalus

Relia algumas das comunicações apresentadas no I Colóquio Internacional "História e Cultura Luso-Árabes", de Outubro de 1998, em Silves, nomeadamente uma comunicação de Teresa Garulo, professora da Universidade Complutense de Madrid, sob o título " Poesia árabe em Portugal", (in XARAJÎB, Revista do Centro de Estudos Luso-Árabes, Silves - Portugal - Nº 1/2000), quando fui surpreendido pela figura de Ibn al-Asili.
Ibn Bassam, de Santarém, já aqui referido por mais de uma vez, escreveu sobre Ibn al-Asili, que conheceu em Lisboa como secretário de um governador (qa'id) de nome al-Mansur. Poeta originário de Saragoça, muito provavelmente, manteve curiosas relações com a zona do al-Ândalus que é hoje Portugal. Conta-nos Ibn Bassam, que Ibn al-Asili esteve em Coimbra, pouco depois da conquista de Afonso VI (1072), disfarçado de mendigo profissional. Servindo com trabalhos de informação os interesses de alguns monarcas da época, que se não coibiam de utilizar os serviços destes mendigos profissionais para estas missões, tanto em Coimbra, como depois noutras cidades do sul de Portugal, nomeadamente Beja, Silves, Santa Maria (Faro) e ainda outras cidades da costa de Huelva, Ibn al-Asili não se teria saído muito bem.
O poema de Ibn al-Asili, que mantenho em castelhano porque não arrisco uma tradução, retrata o seu sentimento durante a sua permanência em Coimbra:

  • (...)
    Vine a Coimbra lleno de esperanza
    Y no encontré buen trato ni comodidades.
    Me privaron de todo, cual si fuera
    Menos que un ser humano
    y estuviese pidiendo lo imposible.
    Quise volver, mas quién me ayudaría
    si me habían cerrado tantas puertas?
    Cuando rondó mi mente la añoranza
    las lágrimas me ahogaran
    - era lo inevitable -.
    Podré volver, amigos, a vosotros?
    Podremos, algún dia, reencontarnos?
    Después de separarnos permanezco
    en el mar de las penas, luchando por no ahogarme.
    Aunque tengo ambición y voluntad,
    me he convertido en un desecho
    en poder de los cristianos (...)



segunda-feira, junho 14, 2004

Rua de Portugal

  • Rua de Portugal

    Já não existe a casa
    vinte o
    número
    da trémula muralha térrea
    defensora
    duma pátria começando
    quase sem luz
    no céu com o sentido que lhe davam
    sombras fixas
    Para lá
    do tecto indefinido a
    luz criava como
    uma onda
    a casa sobre o mar


Gastão Cruz
Rua de Portugal
Assírio & Alvim, Lisboa 2002



sexta-feira, junho 11, 2004

O circo chegou à cidade

Estádio do Algarve
Estádio do Algarve

"Alea jacta est!"

Os "estádios" estão lançados!

De entre a prévia e abundante camada de estrume, bem putrefacto, irrompe já, possante e verde, a relva que, extravasando arenas, tudo cobre até ao horizonte, para além do deficit, agora feito défice, a integrar de pleno direito o quotidiano enriquecido da língua portuguesa.

Também lá estarei mal surja a hora do primeiro golo, alienado, mas embalado nesta ilusão de um Quinto Império por cumprir.

Amanhã, haverá pão?


quarta-feira, junho 09, 2004

Há um Portugal de que não gosto

Sou português, mas sinto-me mais um homem do Mediterrâneo, de qualquer lugar da sua orla, do que propriamente um europeu do norte ou do centro-norte.
Sinto-me assim, mas pouco tenho a ver com o Portugal de que irão falar amanhã ou com a Europa, a propósito da qual irão tentar encher-me os olhos e os ouvidos durante o próximo fim-de-semana.

Chegarão mesmo a falar dela; dessa Europa da qual nada têm dito? Estou em crer que o tema deste final de semana incidirá sobremaneira no tal Portugal em que me não revejo, protagonizado pelos que fazem este Portugal de que não gosto.


terça-feira, junho 08, 2004

Silves n'Os Lusíadas

Na sequência do post de ontem ocorreu-me divulgar outra clássica referência a Silves. Desta feita falo de Luís de Camões e de Os Lusíadas.

Do Canto III, estrofes 86 - 88:

  • (...)
    Despois que foi por Rei alevantado,
    Havendo poucos anos que reinava,
    A cidade de Silves tem cercado,
    Cujos campos o Bárbaro lavrava.
    Foi das valentes gentes ajudado
    Da Germânica armada que passava,
    De armas fortes e gente apercebida,
    A recobrar Judeia já perdida.

    Passavam a ajudar na santa empresa
    O roxo Federico, que moveu
    O poderoso exército, em defesa
    Da cidade onde Cristo padeceu,
    Quando Guido, co a gente em sede acesa,
    Ao grande Saladino se rendeu,
    No lugar onde aos Mouros sobejavam
    As águas que os de Guido desejavam.

    Mas a fermosa armada, que viera
    Por contraste de vento àquela parte,
    Sancho quis ajudar na guerra fera,
    Já que em serviço vai do santo Marte.
    Assi como a seu pai acontecera
    Quando tomou Lisboa, da mesma arte
    Do Germano ajudado, Silves toma
    E o bravo morador destrui e doma.
    (...)


Há ainda uma outra referência no Canto VIII, estrofe 26:
  • (...)
    Vês, com bélica astúcia ao Mouro ganha
    Silves, que ele ganhou com força ingente:
    É Dom Paio Correia, cuja manha
    E grande esforço faz enveja à gente.
    Mas não passes os três que em França e Espanha
    Se fazem conhecer perpètuamente
    Em desafios, justas e tornéus,
    Nelas deixando públicos troféus.
    (...)

Notas (da edição):
86.3-4 “A cidade de Silves tem cercado”: com o auxílio da “Germânica armada” (flamengos e alemães) que formou a Terceira Cruzada (1189-1192) os Portugueses atacaram Silves; “Cujos campos o Bárbaro lavrava”; o Bárbaro é o Muçulmano.
87.2-5 “O roxo Federico, ...”: Frederico I, imperador da Alemanha (1123-1190), o Barba-Roxa ou Barba-Ruiva; “Quando Guido, co a gente em sede acesa”: Guido de Lusignan, último rei de Jerusalém, rendeu-se a Saladino, sultão do Egipto e da Síria, porque as suas tropas morriam de sede. A batalha de Tiberíade terminou pela captura de Guido.
88.1-4 “Mas a fermosa armada, ... / Já que em serviço vai do santo Marte”: a fermosa armada quis ajudar Sancho porque ia pelejar na Guerra Santa.
Ort.: fermosa (por formosa).

26.1-8 “Vês, com bélica astúcia ao Mouro ganha / Silves, ...”: por meio de cilada. Desviando o governador de Silves para Paderne e indo por caminho desviado, foi lançar-se sobre Silves, tomando todas as portas da cidade e impedindo as forças do governador de entrarem e ele próprio (v. Rui de Pina, Cr. de D. Afonso III),, cap. IX); “Mas não passes os três que em França e Espanha”: Gonçalo Rodrigues Ribeiro, Vasco Anes e Fernando Martins de Santarém, que em tempo de D. Afonso IV andaram como cavaleiros andantes em justas e torneios (v. Rui de Pina, Cr. de D. Afonso IV, caps. XIV a XVI).
Ort.: enveja (por inveja); tornéus, por causa da rima.


segunda-feira, junho 07, 2004

Silves, em Almeida Garrett

Folheando a História Luso-Árabe, de Garcia Domingues, de Silves, numa edição da Empresa Editora Pro Domo, Limitada, Lisboa 1945, decidi revelar-vos alguns trechos de Dona Branca, de Almeida Garrett, a cujo poema é possível aceder através do primeiro dos links que coloquei atrás, num excelente serviço que nos é prestado pela Biblioteca Nacional Digital, da Biblioteca Nacional.

O poema, que tem o subtítulo A Conquista do Algarve, fala dos lendários amores de Ibn Mahfot (Aben-Afan), último dos reis árabes de Silves, por Dona Branca, filha de D. Afonso III.
Um primeiro trecho (ortografia da época), onde Garrett nos traça o perfil de Aben-Afan:

  • (...)
    Quem é êste inimigo generoso,
    Que alma tão nobre em peito infiel encerra?
    Quem é êste guerreiro muçulmano,
    Que tão gentil, tão majestoso brilha
    Nas picturescas árabes alfaias
    Que o talhe heróico, o altivo porte, a graça,
    Esbelta, de marcial beleza arreiam?
    (...)

Ainda um outro excerto (ortografia da época), onde Garrett descreve a conquista de Silves:
  • (...)
    Ai de ti, Silves, de tuas nobres tôrres,
    Teu alcácer tão forte! Quem resiste
    Às espadas terríveis de Santiago?
    Já derredor dos muros, que de lanças,
    De frechas, de bèsteiros se coroam,
    Suas tendas assentou, suas azes(1) posta
    O invencível mestre. Já trabucos
    Assestam, catapultas vêm de rôjo,
    Máquinas, ígneas tôrres; e se dobram
    Acobertados couros, protectores
    De escaladas e assaltos. Mas de dentro
    Dos muros os cercados se apercebem
    Para a defesa: ardentes alcanzias(2),
    Duros cantos, ferradas longas varas
    Que os incendiários fachos arremessam
    Às inimigas fábricas. Redobra
    Coragem em uns e noutros o perigo
    Pregam no campo frades indulgências,
    Na cidade os imãs novas promessas
    Fazem de huris(3) e paraísos: folga
    Entanto a morte, e para a ceifa crua
    C'o um pérfido sorriso a fouce afia.
    (...)


Notas (do apostador):
(1) Az, s.f. (do lat. acie-). (...) || Arraial, acampamento. || (...), in Grande Dicionário da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, Tomo II, Amigos do Livro e Sociedade de Língua Portuguesa
(2) Alcanzia, s.f. (do ar. al-kanzia). (...) || Panela de barro, que continha matéria explosiva e se usava nas guerras antigas. || (...), in Grande Dicionário da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, Tomo I, Amigos do Livro e Sociedade de Língua Portuguesa
(3) Huri, s.f. (do fr. houri). No paraíso de Mafoma, mulher formosa, de natureza angélica e dispondo de eterna juventude e beleza, que Mafoma prometera como recompensa aos seus fiéis, quando alcançassem a bem-aventurança., in Grande Dicionário da LínguaPortuguesa, José Pedro Machado, Tomo VI, Amigos do Livro e Sociedade de Língua Portuguesa



sexta-feira, junho 04, 2004

A Lenda das Amendoeiras

Os choupos de Silves - © António Baeta Oliveira
Silves, 22 de Maio de 2004

Quem não conhece a lenda dos amores de Al-Mu'tamid, o príncipe árabe de Silves, por Gilda, a princessa nórdica, saudosa da neve da sua terra!?
Não. Infelizmente não são amendoeiras cobrindo de flores o chão como um manto de neve. São choupos, cujo pólen cobre a terra como uma espessa camada de algodão.

Por onde andarão as amendoeiras?
Sei que não são árvores de sombra, nem árvores ditas decorativas, mas são certamente património do nosso Algarve e, por via da lenda frequentemente atribuída a Silves, um património local.
Não haverá um sítio apropriado, uma pequena área, onde se possa colocar algumas amendoeiras?
Que bem que ficariam na encosta Norte da Alcáçova!
Imagino-as já, na Primavera, iludindo de neve os olhos saudosos dos europeus do Norte que nos visitam, os nostálgicos olhos dos algarvios e dos silvenses que todos os anos as buscam e cada vez as vêem menos, os tristes olhos dos portugueses, que aqui vêm na rota dos mistérios e das belezas do Sol e do Sul.
Património não é só o do passado remoto; é também aquele que a "civilização", no seu passo impiedoso vai destruindo. Saibamos nós mantê-lo, por respeito aos nossos avós e a nós próprios.


quarta-feira, junho 02, 2004

Há património nas palavras de "jcb"

Não passo pelos blogs sem visitar Um pouco mais de Sul. Não é uma obrigação, antes a satisfação de um desejo que se cumpre na leitura dos escritos do jcb, que ali quase diariamente me deixa, para que as colha, pequenas sínteses de vivências com sabor a poesia.
Este fim-de-semana, mais exactamente no domingo à tarde, fiquei preso por longo tempo num seu poema, daqueles que ele nos deu a conhecer e que sentimos correr como a água de que falam, que tratam pelos seus nomes os animais e as árvores, que evocam utensílios que vão perdendo o uso, que arrastam aromas de ervas de que se fazem chás ou mezinhas e paladares esquecidos nos muros brancos, abandonados, que demarcavam quintas onde havia dessa água, dessas árvores, desses cheiros e sabores que quase só restam na memória.

  • Da janela vê-se ao fundo a bruma que
    levanta, os primeiros nomes do mundo oscilam
    pelos muros altos, não tarda sobre as águas
    a calhandra, o fósforo da pedra à luz
    caiada da manhâ. Raparigas passarão
    descalças na linha da margem com maçãs e
    nozes, cântaros castanhos à cabeça, rosas
    que os cabelos não seguram muito tempo. O
    dia claro inunda como um sopro as folhas
    do negrilho antigo, mistura os seus
    declives ao odor dos púcaros suspensos da
    parede: melancólico dia sem outros fios
    que os de prender o caminho à casa e ao
    silêncio o corpo quebrado nas horas tardias.


José Carlos Barros
Uma Abstracção Inútil
editorial declives
Évora 1991
Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 1990


Antes de sair não posso deixar de agradecer a referência elogiosa que me deixou o Helder Raimundo no seu Contrasenso. Obrigado!


terça-feira, junho 01, 2004

Arrumos e memórias

Andei a arrumar coisas. Uma delas foi precisamente a coluna direita deste blog, que estava a ficar demasiado comprida. Conservei os poetas luso-árabes e ganhei espaço para repor os seus nomes, como anteriormente. Remeti os outros poetas para outro lugar, a que se pode facilmente aceder, terminada a lista dos poetas andalusinos, através de um link que diz POESIA ... de outros poetas. Afinal é só uma questão de facilidade de acesso. Eles encontram-se ao fundo desta página.

Também andei a arrumar jornais e outra papelada e deu-me para partilhar convosco o excerto de uma entrevista que há algum tempo concedi ao Postal do Algarve e em que à questão:

    - Quanto a si o que é que mais poderia ser feito em prol do teatro?
respondia:

    - As necessidades do teatro são as necessidades da cultura.
    Vivemos uma época típica de uma sociedade em mudança, que já não é o que era, mas também ainda não é outra coisa. As pessoas estão mais disponíveis para a frivolidade, para os espectáculos inebriantes de luz e cor, para as coisas fáceis de aceitar, sem grandes elaborações mentais e que possam vir a ser motivo de conversa e de aceitação e identificação social. É o tempo das grandes massas e das empresas voltadas para a satisfação desses desejos fáceis: as televisões, o futebol, o dia-a-dia das grandes e efémeras vedetas, que quase nem têm tempo de chegar a sê-lo. Não estamos em tempo de reflexão, de criação, de honestidade intelectual e o teatro e a cultura vivem precisamente da reflexão, da criatividade e da honestidade intelectual. Tem uma clientela reduzida e, necessariamente, apoios reduzidos. Somos o reflexo da sociedade em que vivemos.