quarta-feira, março 09, 2005

Os Passos dos meus passos (II)

(Continuação)
  • (...)
    Chegava a hora dos preparativos do "Passo" do Francisco António. Era assim conhecido o do meu avô. O carregar e montar o altar, as toalhas e os paramentos, as velas, as flores e o vestir das nossas indumentárias: de anjinho para a minha irmã e de São Luís para mim, as que recordo melhor.

    A procissão dessa altura, ainda não havia avenida junto ao rio, vinha até ao largo onde hoje se situa o Mercado Municipal e encaminhava-se para o Largo Coronel Figueiredo, junto à ponte repleta de gente, anunciada pelos vizinhos do outro lado da rua, com casas mesmo sobre o rio, o Zé Vicente, ou da outra esquina em frente, a Aurora Pombo. A procissão, longa e silenciosa, aqui ou além pontuada pelo rufar de um tambor, aguardava, antes de entrar na rua Mouzinho de Albuquerque, que o padre, sob o pálio, acompanhado por um grupo de músicos, se dirigisse ao "Passo" do meu avô(1) Passos em Silves, Março de 2005, © António Baeta Oliveirae aí se desempenhasse a cerimónia de uma passagem da Paixão, numa toada musical triste, dramática e angustiante, como a que voltei a recordar nestes Passos do ano de 200(5).

    Incorporados no cortejo seguíamos então até à Sé.

    Quão diferente era esta Igreja daquela outra de Alcantarilha!

    Aqui já não era a aventura e o mistério da descoberta do que fica por detrás das coisas, era o esmagamento da dimensão, da grandiosidade de uma Sé que fora episcopal, da minha identificação com os que neste mesmo lugar me antecederam, de um orgulho silvense que de pequenino começou a despertar em mim e que me fazia acreditar na frase tantas vezes ouvida e repetida: "Passos em Silves; Semana Santa em Sevilha".

    Hoje a religiosidade tem uma prática mais íntima, não vive da exterioridade das procissões, mas a tradição religiosa ainda exige estas evocações solenes dos passos da vida de Cristo. A procissão do enterro do Senhor, à noite, no centro histórico desta cidade de Silves, com as matracas ressoando sob o arco do Torreão da Almedina, anunciando as opas escuras, as velas tremeluzentes, os quadros, tombados, da Igreja da Misericórdia, a tumba do Senhor, num ambiente de tom medieval, ou ainda a procissão da manhã do Domingo de Páscoa, florida, recebida entre janelas alindadas por colchas multicores, com os vestidos novos das raparigas ainda mais bonitas, são ainda uma atracção que a todo o custo evito perder.


(1) (nota de hoje) - O "Passo" do meu avô (devo corrigir, por respeito à sua memória, era das minhas tias, pois o meu avô era um republicano laico, "à antiga") passou à família Rita, da mercearia ao lado e, hoje em dia, mantém-se ainda na posse dessa família, ao lado de quem voltei a residir, noutra rua e noutro contexto.

2 comentários:

hfm disse...

Gosto de ler estes textos

eduardo disse...

Acabei por ficar mais enriquecido.
Obrigado, António.

Um abraço.