quinta-feira, maio 06, 2004

Um grito, em vez de um poema

Hoje, em vez do poema luso-árabe que faço por manter na primeira página deste meu blog, quero trazer-vos um texto, como um grito, de Borges Coelho, o historiador de Portugal na Espanha Árabe, Editorial Caminho, Lisboa, 1989:


  • " Aceita-se, geralmente, a contribuição do Islão na propagação das técnicas de rega, da bússola, do papel e no aumento do pomar peninsular sem se ousarem conclusões necessárias. A fisionomia do Portugal agrário moldou-se em boa parte pelo arquétipo do Ândalus mourisco, mesmo quando não é ele o autor das técnicas, mas o seu último transmissor.
    Apaguem-se por um momento dos campos de Portugal as sombras do pessegueiro, do limoeiro, da laranjeira, da nespereira, da ameixoeira, da alfarrobeira; recue-se para Sul a oliveira, suprimindo a comercialização do azeite e da azeitona; rareiem-se as amendoeiras e as folhas largas das figueiras com o seu almeixar; suprimam-se as noras, os alambiques, as alquitarras; intensifique-se a vinha no Alentejo e no Algarve; retire-se da periferia das cidades a mancha verde das hortas, dos meloais, das forragens; castrem-se os cavalos de Alter; afoguem as azenhas ou calem o canto dos moinhos de vento (...); abatam a camartelo as muralhas do Centro e do Sul cujo risco, para lá das reparações e dos acrescentos posteriores, foi obra dos seus alarifes ou arquitectos; desmontem as almenas, as abóbadas do chamado gótico alentejano, as fontes abobadadas; piquem as taipas, os estuques, destruam as casas de adobe caiadas de branco por dentro e por fora; enterrem os azulejos; queimem as esteiras, as alcofas, os capachos, os tapetes; rachem os alguidares; tentem destruir os couros, os arreios, as grades geométricas. Que nos fica? "


Diria ao Borges Coelho que ainda não conseguimos acabar com tudo, mas temos feito um bom trabalho. Lá isso temos!

3 comentários:

Anónimo disse...

Bravo ao autor do texto pelo seu saber e entusiasmo da sua fala, e ao António que no-lo deu a conhecer. Cumprimentos.fcr.

Anónimo disse...

É curiosa, e para mim algo surpreendente, a forma como aqui interpretaste (usaste!)este escrito de Borges Coelho que eu inúmeras vezes citei, a alunos e outros. Dele fizeste uso pessimista, ao invés do que costumo fazer. Considero-o um dos trechos mais bonitos e inteligentes para explicar de forma literária e simples(poderei até dizer poética) o que é a nossa herança mourisca. Que não se materializou em grandes monumentos, mas em inúmeros e variados registos que, por egoísmo ou ignorância, atribuímos à nossa especificidade cultural. Neste texto, Borges Coelho procura (pela forma negativa...) mostrar quão mais pobres e diferentes seríamos sem essa herança.

Anónimo disse...

Que nos fica? (Não tenhamos medo de o dizer em voz alta): quase nada.